São Paulo, domingo, 29 de março de 2009

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NO RIO

lugares sagrados

por Heloisa Seixas

Um passeio inesperado pelas velhas bibliotecas do centro do rio

Estive lá há pouco tempo, por puro acaso. Precisava tratar de um registro de autoria e achei que o lugar para fazer isso era a Biblioteca Nacional. Havia muito tempo que não detinha o olhar no edifício austero, plantado no coração da Cinelândia, que ultimamente anda envolto em véus para o trabalho de restauração. Apressada, subi a escadaria de vista baixa, passei pelos andaimes que contornavam a porta principal, e entrei. Mas, assim que pisei o saguão, olhei em torno -e, pronto, deu-se o encantamento.

As paredes de mármore, as arcadas, o tapete vermelho da escadaria, os gradis trabalhados, os lustres, os apliques, as estátuas, tudo pareceu girar, envolto em luz. Ergui o olhar e a impressão cresceu, porque acima de mim se projetavam os três andares em torno do saguão, com seus balaústres banhados pela luminosidade que se despeja através dos vitrais da claraboia.

No balcão de informação, soube que não podia fazer o registro ali. Mas achei que não custava nada dar uma subida e espiar um pouco mais. Fui até o setor de obras raras, cujas estantes envidraçadas me tinham ficado na memória. O lugar é realmente uma beleza, com teto de sancas esculpidas e chão de parquê, tudo também envolto na luz filtrada dos vitrais. Estava cheio de gente nas mesas. O silêncio era total. Como num templo, pensei. A comparação era inevitável.

Tenho um amigo que sempre vai à Biblioteca Nacional fazer pesquisa. Quando fala do lugar, faz uma reverência. É compreensível. Não fosse por sua antiguidade (a instituição tem 200 anos, o prédio, cem) e por seu acervo (o maior da América Latina, com quase 11 milhões de itens), ainda assim a Biblioteca Nacional seria um tesouro. Seu núcleo original, a Real Biblioteca, que atravessou os mares quando a corte portuguesa veio para o Brasil em 1808, já tinha, à época, uma longa história, sendo herdeira da Livraria Real, que desaparecera tragada pelo incêndio de Lisboa, em 1755.

Meia hora depois, quando me vi de novo na rua -ainda com a intenção de fazer o registro-, a imagem daquele lugar de livros e luz continuava tão forte em minhas retinas que não resisti à ideia de adiar tudo e completar a tarde com outra visita. Seria só seguir em direção à praça Tiradentes. Ali perto, fica outra velha -e lindíssima- biblioteca do centro do Rio: o Real Gabinete Português de Leitura. Foi o que fiz.

Fundado em 1837 por um grupo de imigrantes portugueses, o prédio da rua Luís de Camões só foi inaugurado em 1887. Sua fachada toda rebuscada, em pedra de lioz e cheia de estátuas, é no estilo manuelino, o que faz o Gabinete, por fora, parecer mesmo um templo. E penetrar nele -talvez por ser menor, ou por ser menos conhecido- é uma experiência tão ou mais impactante que a da Biblioteca Nacional. Muitos já viram o Real Gabinete em anúncios ou novelas de época, mas talvez tenham pensado que era computação gráfica.

Quando se cruza aquele umbral, após subir dois ou três degraus despretensiosos e percorrer um pequeno corredor, a visão que se tem é acachapante. Um único e gigantesco vão, sem divisões internas, com todas as paredes repletas de livros, de cima a baixo, tendo no alto uma claraboia de onde pende imenso candelabro de ferro trabalhado. Ali, assim que entramos, começamos a falar aos sussurros. Não estranhem. Nos lugares sagrados é assim.



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