São Paulo, domingo, 29 de novembro de 2009

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FINO

O Profeta do Kaos num maracatu atômico

por ALICE GRANATO, do Rio

HIPERTROPICALISTA

Aos 68 anos, o cantor, compositor, escritor, ator, praticante de tai chi e avô de Júlia fala da estreia no teatro, do novo disco, "Kaosnavial", e do Brasil "da amálgama"

Uma conversa com Jorge Mautner pode parecer uma viagem transcendental.

Em poucos minutos, com articulação suave, ele vai da "amálgama" de José Bonifácio de Andrada e Silva para a filosofia dos gregos Aristóteles e Heráclito, passando pela antropofagia de Oswald de Andrade, com uma breve pausa para dizer que o candomblé é quântico, que os portugueses acolheram os templários, que traziam as culturas proibidas da Idade Média, e que tudo isso resultou no Brasil.

Parece papo de doidão, mas, com um esforço de concentração, é possível seguir seu raciocínio e o encadeamento de ideias, que acabam por fazer sentido (ao menos para esta repórter). Cantor, compositor, violinista, filósofo, tradutor, ator, esse carioca de 68 anos teve uma formação que ajuda a explicar a complexidade de sua existência. "Sou filho do Holocausto e criado no candomblé", define. O pai judeu e a mãe católica, ambos austríacos, vieram para o Brasil refugiados da Segunda Guerra Mundial. Um mês depois da chegada ao Rio, nasceu Jorge, que teve como segunda mãe uma baiana yalorixá e um padastro alemão, que lhe ensinou a tocar violino.

Considerado por seus amigos Gilberto Gil e Caetano Veloso desde os tempos de exílio em Londres, em 1970, o mais tropicalista de todos, o autor de "Maracatu Atômico" –conhecida pelos mais jovens na voz de Chico Science– vive uma fase especialmente produtiva. Lança no próximo sábado, 5 de dezembro, seu novo CD, "Kaosnavial", gravado em Nazaré da Mata, na zona da mata de Pernambuco. "Fui gravar o maracatu em sua casa e de lá ele vai viajar o planeta", diz, sorridente. "Pernambuco está no meu coração e o Chico Science está homenageado no disco, claro. Gravamos ao ar livre com o grupo Maracatu Estrela de Ouro, muitos tambores, foi uma maravilha."

Em paralelo ao trabalho musical, Mautner estreou no Rio como ator de teatro na peça "Deus é Química", com texto de Fernanda Torres baseado em um conto dele, "Química da Ressurreição". Ele está no palco ao lado de Fernanda, Luis Fernando Guimarães e Francisco Cuoco, entre outros. A peça, que estreou em agosto, deve começar a viajar pelo Brasil.

Você se autodefine o Profeta do Kaos. O que isso significa?
O Profeta do Kaos, com k, é um personagem mitológico, como é toda a minha obra. Tudo o que faço, literatura, música, palestras, está enquadrado nesse Kaos. Segundo Gil e Caetano, o Kaos é o predecessor do tropicalismo. É muita generosidade deles, mas, em um sentido, foi mesmo: nós caminhamos pelo grande universo, como Oswald de Andrade e outros, representando a amálgama. E acreditando que do Brasil nascerá a nova era. No disco que fiz com Caetano ("Eu Não Peço Desculpas", 2002) reafirmo: Jesus de Nazaré e os tambores do candomblé, ou o mundo se brasilifica ou vira nazista.

Pode-se dizer então que é um acreditar profundo no Brasil?
José Bonifácio de Andrada e Silva, em 1823, nos define dizendo que o Brasil, diferentemente de todos os outros povos e culturas, tem a amálgama, a mistura, a miscigenação, uma combinação alquímica que faz os brasileiros reinterpretarem cada situação em um milionésimo de segundo absorvendo pensamentos contrários e chegando a um caminho do meio, que é o sonho dos filósofos, Aristóteles, Heráclito. Por isso o Brasil hoje tem essa importância no mundo. O Kaos com k faz parte disso, como faz parte a antropofagia do Oswald de Andrade e quase toda a literatura brasileira, desde Padre Antônio Vieira e até antes.

Você é cantor, compositor, escritor, violinista, tradutor, filósofo, ator. Qual é o cerne de sua obra?
A pregação constante da amálgama, a luta contra o neonazismo, o racismo, a celebração da democracia, dos mistérios e uma contínua construção da descoberta do outro. É o humanismo em ação, que também se forma com a ciência e tem todo o lado das previsões, profecias. É uma atividade política-cultural permanente.

Seus amigos Gil e Caetano costumam dizer que você é o hipertropicalista. Concorda?
(Risos) Creio que sou o mais panfletário. Tenho obsessão pela amálgama. E sou o meu próprio personagem! Não tem diferença, na literatura, na música e na vida, sou o mesmo. Está tudo ligado.

Muita gente o considera genial. Mas sua obra nunca teve muito apelo comercial, sempre foi mais marginal. Faz sentido?
O grande público me alcança através de entrevistas, ideias e das músicas. Tenho uma música do disco "Eu Não Peço Desculpas", com Caetano, que vendeu mais de um milhão, pois foi acoplada ao um disco de novela. A garotada, com sua inteligência emocional, examina tudo, e tem me compreendido.

Como foi a experiência de gravar seu novo disco em Pernambuco?
Foi uma loucura! O maracatu em sua casa, em sua legitimidade. Gravamos "Maracatu Atômico" ao ar livre, com vários tambores, acompanhados pelo grupo Maracatu Estrela de Ouro, formado por ex-cortadores de cana. O disco traz homenagens a Capiba, Chico Science. Traz maracatus e cirandas lindas. Foi uma experiência maravilhosa.

Como se sente no palco sendo dirigido pela Fernanda Torres?
Num excesso de generosidade, ela me colocou como coautor da peça só porque leu um conto meu chamado "Química da Ressurreição", que desencadeou nela algumas ideias. Ela disparou como escritora, é a primeira peça que escreve, genial. Estou lá por isso, e pela grande amizade e fascínio que tenho pela Fernanda. O texto trata de situações traumáticas, narcotráfico, terrorismo, assassinatos, mas tudo apresentado por um novo olhar, que é o da Fernanda, que, sem demonizar, dissolve tudo com ternura, amor e humor. Eu havia trabalhado como ator em filmes, mas em teatro foi a primeira vez.

E que tal?
Agora entendi porque o teatro é que inventou a democracia. Aquilo não para nunca! Você tem de fascinar com o corpo e a voz, sem nenhum outro instrumento ou mídia, é uma coisa totalmente primal e, ao menos tempo, supersofisticada. Cada dia da peça é diferente e a paixão absoluta da equipe me impressiona.

O que hoje é motivo de alegria pra você?
A minha filha Amora e minha neta Júlia, de dois anos [filha da diretora de TV Amora Mautner e do ator Marcos Palmeira].

Como é o avô Mautner? O que gosta de ensinar para a sua neta?
Ela é muito inteligente, viva. Eu gosto de tocar no violino as músicas de que ela gosta, de crianças, mas também toco as de adulto. Ela mesmo canta, interpreta. Claro, eu sou avô coruja.

E o que mais o aflige hoje?
A minha única preocupação é com a saúde, que é fundamental. Mas aí Deus é quem sabe... Eu me cuido. Faço ginástica desde os oito anos. Em 1958, comecei a praticar o tai chi chuan diariamente.

MEMORABILIA
Coleção de memórias de Jorge Mautner:

OBJETO: "Meu pai era caixeiro-viajante e me trouxe um tacape e um arco e flecha. Fiquei impressionado, pois ele sempre me contava histórias de Goiás, da Amazônia, do Mato Grosso e eu estava ali com aqueles instrumentos."

MÚSICA: "Os batuques dos orixás. Os cânticos gregorianos e também hinos, o hino nacional, pois aos quatro anos eu já batia continência. E ‘Jesus, Alegria dos Homens', de Bach."

LIVRO: "'A Reforma da Natureza', de Monteiro Lobato. Emília sai para fazer travessuras e começa a reformar o mundo. É muito bom."

LUGAR: "Terreiro do candomblé. E uma pensão de um refugiado de guerra no Rio de Janeiro onde morei. O dono se chamava Frankenstein, nunca vou me esquecer."

COMIDA: "Batata frita, feijão com arroz e bife feitos pela minha babá Lúcia, minha segunda mãe. Às vezes tinha farofa também." Até hoje eu gosto muito dessa combinação."

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