São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2008

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PASSAGEM

ADEUS, LÊNIN!

por LETÍCIA COURA

Em turnê com sua banda berlinense pela Áustria e Alemanha, a cantora e compositora Letícia Coura escreveu para Serafina seu diário de bordo

1. Berlim

“A música é o ranger das portas do paraíso. ‘Eu não gosto do barulho do ranger das portas’, disse um. ‘É porque você ouve o ranger das portas se fechando; eu as ouço abrindo’...” Ouvi o trecho desse poema sufi, impresso no encarte de uma coletânea de CDs árabes, traduzido do alemão pela amiga e hospedeira Irene. Assim começou minha viagem a Berlim, Viena e Landwüst para uma miniturnê de shows com a banda do leste de Berlim Schnaftl Ufftschik, que em alemão não quer dizer nada.
- Vocês podem pegar o metrô das 4h40 (!), atravessar a cidade e a gente pega vocês na Bismarckstrasse, em frente à Deutsche Oper, às 5h25.
- Ãhn?
E assim eu e Adriana Capparelli, também cantora e compositora, demos início à nossa viagem a Viena para participar do Donauinselfest, o maior festival de música ao ar livre da Europa. De Berlim a Viena seriam dez horas de carro, que pareciam intermináveis, mas transcorreram muito agradáveis, com direito a ensaio a bordo, com acordeon midi ligado no som, cavaquinho e partituras no notebook movido a bateria do carro. Viajar de trem pela Europa é, por um lado, mais bonito, pitoresco, entra-se nas cidades, quase se vê a vida dos habitantes através das janelas. Pelas auto-estradas já não é bem assim, passamos sempre fora das cidades, não vemos seus moradores nem suas casas, mas, em contrapartida, não temos que pensar em bagagens ou em táxis na chegada. Principalmente quando boa parte da bagagem são instrumentos musicais como um souzaphone (um tipo de tuba, só que maior).

2. Viena

Chegamos a Viena às quatro da tarde, num calor de 30 C, depois de atravessar parques, chafarizes e o palácio de Schönbrunn, um dos maiores, mais belos e importantes da Europa, residência de Sissi, a imperatriz. Por uma ponte chegamos a uma ilha no meio do Danúbio, em pleno centro da cidade. Muita gente tomando sol na beira do rio, famílias fazendo piqueniques e alguns se aventurando pelas águas geladas.

3. Danúbio

Estamos agora no DonauInselFest, Festival da Ilha do Danúbio. Sim, o Danúbio Azul, da valsa de Strauss, mas valsa não parece o forte do festival. São 23 palcos para públicos de 100 mil a 200 mil pessoas, totalizando 600 horas de música ao vivo, de estilos tão diversos quanto pop, rock, hip hop, world music, jazz, kabarett, punk rock, erudito, eletrônico, música dos Bálcãs, africana, árabe e o que mais você imaginar. Esta foi a 25ª edição do festival, que acontece sempre em junho, mas, neste ano, ocorreu de 5 a 7 de setembro –adiado pela disputa da Eurocopa.

4. Landwüst

Manhã seguinte, estrada. Quando contávamos em Berlim que iríamos tocar em Landwüst –em alemão, algo como terra deserta, rude–, a resposta era uma interrogação. Nem a amiga Kathleen (Katilene, para os amigos brasileiros), natural de Dresden, também na antiga Alemanha Oriental, tinha ouvido falar desse lugar. Para completar, “wurst” é salsicha, especialidade do país, e em alemão mal falado as duas palavras soam iguais. E ninguém conhecia a tal terra das salsichas.

Chegamos então num paraíso rural fora do tempo, com vacas e ovelhas enormes e gordas, montanhas discretas, estradas estreitas e curvas, e uma chuvinha fina que não caía. E o silêncio. O hotel fazenda ?era uma antiga construção alemã, ?Untere Rauner Mühle, ideal para descansar das viagens. Duas horas de sono no quarto com flores e tomates na janela e fomos direto para o Vogtländisches Freilichtmuseum ?Landwüst, que, não só existe, como conta com casa de shows em pleno campo, em frente a canteiros de ervas e flores. Público caloroso de várias cidades vizinhas, que só não falava nem compreendia inglês –um dos músicos era nosso tradutor português/alemão. Noite regada a cerveja da região, mostardas e “wursts”, as famosas salsichas.

5. Berlim - SP

De volta a Berlim, três dias antes do último show com os Schnaftls. Passeios de bicicleta à beira do rio Spree e dos canais que cortam a cidade. A feira turca de Neukölln às terças-feiras e o perfume de tabaco pelas ruas, o Museu de Instrumentos Musicais ao lado da Filarmônica, o Pergamon Museum. Dia 11 de setembro, show no Lokhalle im Natur-Park Schöneberger ?Südgelände, uma antiga estação de trens de Berlim, que hoje é parque público, galeria de arte e galpão de shows. Cantamos e tocamos a mistura de nossas letras e canções com a música do Leste Europeu. Em português, inglês e alemão. Então, de volta a São Paulo. Muitas idéias nas mãos, música na cabeça e muitas horas pelas nuvens. Mas agora já sei como entrar e viajar pela alma dos povos. É só deixar soar o ranger das portas...

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