São Paulo, domingo, 31 de janeiro de 2010

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ÍCONE

A cantora que mais partiu corações na MPB

por RUY CASTRO, de Washington

SIMPLESMENTE COOL

Bossa nova antes da bossa, Doris Monteiro cansou de partir corações masculinos

Ela já era "cool" antes que as pessoas por aqui sequer soubessem o que era isso –ponha aí comecinho dos anos 1950. Fazer vibrato com a voz, à maneira de Dalva ou Elizeth, nem que quisesse –não conseguiria. E seu estilo, desde sempre, passava uma segurança adulta, uma "sagesse", que já despertava maus pensamentos em quem só a conhecia de ouvi-la no disco ou no rádio.
Um estilo que se conta por alguns dos grandes sambas que ela apresentou ao mundo: "Mocinho Bonito", de Billy Blanco; "Graças a Deus", "Joga a Rede no Mar" e "Dó Ré Mi", de Fernando César; " Palhaçada", de Luiz Reis e Haroldo Barbosa (sim, antes de Miltinho!); " O Que Eu Gosto de Você", de Silvio César; " Mudando de Conversa", de Mauricio Tapajós e Hermínio Bello de Carvalho; " Alô, Fevereiro" e " É Isso Aí", de Sidney Miller. No meio disso, veio a bossa nova e descobriu que Doris já cantava " daquele jeito". Daí que algumas bossas mais complexas caíram no seu colo, como se só estivessem esperando por ela para ficar eternas: " Tristeza de Nós Dois", de Durval Ferreira, Mauricio Einhorn e Bebeto Castilho; " Samba de Verão", de Marcos e Paulo Sergio Valle; " Baiãozinho", de Eumir Deodato; " Sambou... Sambou", de João Donato.
E, numa fase posterior da música, Doris se apossou de temas que, depois dela, outros tiveram dificuldade de encarar, como " De Noite na Cama", de Caetano Veloso, ou " Viagem", de João de Aquino e Paulo César Pinheiro.
E há a sua beleza. Num filme de 1957, a chanchada "De Vento em Popa", deu-se a epifania. Todos sabiam que Doris era bonita, mas ninguém imaginava promovê-la a deusa até vê-la cantando " Dó Ré Mi" para o galã Cyll Farney, numa sequência que nem parecia de filme brasileiro. Quem era aquela mulher em preto e branco que, de repente, surgia do fundo da cena com as sobrancelhas incisivas, o olhar vago, distante –"cool", muito "cool"– e a tremenda boca de beijos?
A partir dali, até os torcedores do Flamengo se apaixonaram pela ardente vascaína Doris. Os textos de contracapa de seus LPs começaram a conter declarações de amor por parte dos homens contratados para escrevê-los, todos lamentando não ter sido correspondidos. Durante décadas, Doris foi a cantora que mais partiu corações masculinos na música brasileira. E, sem fazer nada para isso, exceto recusar educadamente as mais irresistíveis declarações. No fundo, continuava a ser a menina que, ao surgir no rádio aos 17 anos, usava uma longa trança e tinha uma mãe que não deixava ninguém chegar perto. Por causa da oposição materna, abriu mão do homem que era a sua grande paixão (o ator Carlos Alberto); nunca bebeu ou fumou; namorou muito menos do que poderia; e se casou três vezes, a última das quais (com o pianista Ricardo Albano Jr.) já dura mais de 30 anos.
Em 2004, nos seus 55 anos de carreira, a EMI-Odeon relançou em CD os 13 álbuns que ela gravou lá, de 1966 a 1978, talvez os seus melhores. Com isso, os brasileiros puderam desfrutar de um privilégio até então só acessível aos japoneses: ouvir Doris em digital. E, no que fizeram isso, entenderam por que, durante tantos anos, a música brasileira esteve a salvo –porque tinha Doris Monteiro para cantá-la.
Tem ainda. É só a música querer.

Também na Era Obama, nada é simples como branco e preto.

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