São Paulo, terça-feira, 26 de julho de 2005

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leituras cruzadas

Com enfoque direto e métodos mais rigorosos de pesquisa, historiadores propõe em livros novas abordagens sobre a escravidão no Brasil, desfazendo mitos e possibilitando uma leitura profunda do comércio internacional de escravos

Uma história em claro-escuro

Oscar Pilagallo
colaboração para a Folha

A publicação de novos estudos sobre a escravidão, a tradução de importantes análises sobre o tema, a recuperação de uma obra há muito tempo fora do catálogo, a reedição comemorativa de um clássico da sociologia brasileira, tudo isso permite ao leitor perceber a rapidez com que avança a historiografia sobre os negros.
Num intervalo de poucas décadas, a saga dos escravos foi contada de perspectivas antagônicas, variando da condenação descontextualizada à exaltação de certos aspectos comportamentais. Teses situadas nos dois extremos fizeram escola cada qual em sua época e, por um período, influenciaram grande parte da produção acadêmica.
Hoje, os excessos de interpretação perderam espaço com o surgimento de novos trabalhos que, embora diferentes em seus recortes, têm em comum a serenidade do enfoque e o método mais rigoroso, algo que talvez não tenha sido possível aos pioneiros. As obras aqui abordadas desfazem mitos e possibilitam uma leitura nuançada da escravidão.
John Thornton, professor de história da Universidade de Boston, nos Estados Unidos, jogou novas luzes sobre o cenário africano em que nasceu o comércio internacional de escravos. É fato sabido que a escravidão existia na África quando os portugueses chegaram para comprar escravos. A nova demanda só fez aumentar a oferta. Em "A África e os Africanos na Formação do Mundo Atlântico - 1400-1800" (Campus, 440 págs., R$ 76), Thornton deixa clara sua conclusão: "O comércio atlântico de escravos foi o resultado dessa escravidão interna".
Thornton refuta a idéia de que, como a exportação de escravos seria prejudicial à África a médio prazo (devido à perda de mão-de-obra), as elites locais teriam sido, de alguma maneira, forçadas a consentir com o comércio. A escravidão, diz, estava enraizada em estruturas legais e institucionais das sociedades africanas. O argumento é convincente: como na África a propriedade da terra era corporativa, os escravos consistiam na única forma de propriedade privada, reconhecida em lei, que produzia rendimentos. "Foi a ausência de propriedade privada de terras que levou a escravidão a ser tão difundida na sociedade africana."
Ao chegarem ao Brasil, esses escravos -mais de 3 milhões atravessaram o Atlântico em cerca de 300 anos- mudariam para sempre a história do país. Para citar um único dado, todos os ciclos econômicos até o século 19 dependeram de mão-de-obra escrava. Apesar de sua enorme importância, no entanto, a escravidão havia sido relativamente pouco estudada até o início do século passado.
O pioneiro dos estudos do negro no Brasil foi o pesquisador Raymundo Nina Rodrigues (1862-1906). Com métodos hoje considerados pseudocientíficos, ele comparou as culturas dos negros baianos com aquelas originárias da África Ocidental. Com todas as limitações dos instrumentos com que podia contar, acabou fazendo as primeiras descrições do que os antropólogos passariam a chamar de aculturação.
Uma mostra da pesquisa de Nina Rodrigues ajuda a compreender como, em poucas décadas, os estudos sobre a escravidão evoluíram. A oportunidade é dada pela reedição de "Antologia do Negro Brasileiro" (Agir, 592 págs., R$ 54,90), de Edison Carneiro, publicada pela primeira vez em 1950 e esgotada há tempos.
Nina Rodrigues é apresentado no livro por Arthur Ramos (1903-1949), seu seguidor e responsável pela transição para a "nova história" dos negros no Brasil, na visão do inglês John Russell-Wood. "Sua missão como estudioso foi penetrar o mito da inferioridade racial atribuída a pessoas de origem negróide e conferir aos negros o respeito e o reconhecimento merecidos por suas realizações", afirma Russell-Wood em "Escravos e Libertos no Brasil Colonial" (Civilização Brasileira, 476 págs., R$ 49,90).
Publicado em inglês em 1967, o livro de Russell-Wood é a maior evidência de que os estudos sobre a escravidão vêm obrigando os historiadores a reformular conceitos. A defasagem de mais de 30 anos entre o original e a tradução levou o brasilianista a produzir, para a edição em português, um epílogo de quase 70 páginas com o propósito de refletir sobre o que mudaria no texto caso escrevesse o livro hoje.
A linha central de sua investigação, porém, manteve-se em pé. Para Russell-Wood, o grande número de alforrias concedidas ou compradas durante o período colonial "não foi acompanhado por nenhuma melhora na posição legal, da situação civil ou das condições de vida dos libertos de ascendência africana".
Ao puxar o fio cronológico da historiografia da escravidão, Russell-Wood comenta que a obra de Arthur Ramos chegou a ter grande aceitação até ser eclipsada, na década de 30, pela publicação de "Casa-Grande & Senzala", de Gilberto Freyre. "O tema global de Freyre", diz Russell-Wood, "era que a situação atrasada do negro no Brasil se devia às condições econômicas e sociais, não a fatores raciais".


Os negros alforriados não costumavam viver afastados porque, se confundidos com fugitivos, poderiam ser capturados; a proximidade entre eles e a comunidade patriarcal favoreceu a mestiçagem


Escrevendo para o público inglês, o brasilianista produziu sínteses que podem ser lidas com proveito pelo brasileiro, como o resumo crítico de "Casa-Grande & Senzala". O livro, diz ele, "representou uma reavaliação da colonização portuguesa. Freyre aventou que a força da lei portuguesa, acoplada às forças onipresentes do catolicismo, levou os portugueses a buscarem uma forma mais benigna de escravidão. Além disso, os portugueses, devido a seus contatos com outras raças e povos, teriam desenvolvido certa flexibilidade em suas atitudes. No Brasil, a ausência de barreiras institucionais resultou numa miscigenação rápida em data precoce da história da colônia. Assim, prosseguia Freyre, os portugueses praticaram a verdadeira democracia racial nas Américas".
Para Russell-Wood, a obra de Freyre "viria a moldar a percepção e as concepções errôneas de pelo menos duas gerações de estudiosos dentro e fora do Brasil". A opinião do brasilianista, que hoje é compartilhada pela maioria dos estudiosos, está em linha com o pensamento do historiador britânico Charles Boxer, que liderou um processo de reavaliação da metodologia e das conclusões de Freyre. Boxer enfatizou que a propensão portuguesa de ter relações com mulheres de outras raças não era sinônimo de respeito aos não-brancos e que não havia relação causal entre um ato físico e as atitudes mentais.
No Brasil, a crítica mais contundente a Freyre partiu do sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995). Como lembra Russell-Wood, "Fernandes alegou que o mito da democracia racial era uma barreira à verdadeira democracia racial e só servia para mascarar o problema da discriminação ao negar sua existência".
No início da carreira, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso certamente endossaria a crítica de Florestan Fernandes. Hoje, talvez ainda o faça, mas com ressalvas que lhe permitiram escrever o prefácio da edição comemorativa dos 70 anos do clássico, em 2003. No texto, Fernando Henrique comenta: "Os críticos nem sempre foram generosos com Gilberto Freyre. Mesmo os que o foram, raramente deixaram de mostrar suas contradições, seu conservadorismo, o gosto pela palavra sufocando o rigor científico, suas idealizações. É inútil rebater as críticas. Elas procedem." Na conclusão, porém, reconhece o valor de uma obra que veio para ficar. "[Freyre] mostrou, com mais força do que todos, que a mestiçagem, o hibridismo e mesmo (mistificação à parte) a plasticidade cultural da convivência entre contrários não são apenas uma característica, mas uma vantagem do Brasil."
Sem terem lido "Casa-Grande & Senzala" da mesma maneira que Fernando Henrique, com o benefício do retrospecto, muitos contemporâneos de Freyre extrapolaram a análise de que a sociedade brasileira, se comparada à norte-americana, tinha vantagem com a escravidão. O historiador que esticou ao máximo essa linha de raciocínio foi Frank Tannenbaum, autor de "Slave and Citizen" ("Escravo e Cidadão"), não traduzido no Brasil. Tannenbaum é citado em "Além da Escravidão" (Civilização Brasileira, 352 págs., R$ 39,90), de Frederick Cooper, Thomas Holt e Rebecca Scott. Na obra, a historiadora Hebe Mattos registra a grande influência exercida por Freyre sobre o autor norte-americano, mas não deixa de mencionar as diferenças.
Para Tannenbaum, a especificidade da colonização católica se encontra na extensão do acesso à alforria, especialmente por meio da prática de autocompra e nos direitos nela implícitos. Na formulação de Freyre, continua Hebe Mattos, "as relações de afetividade hierarquizada entre senhores e escravos é que são privilegiadas na interpretação do crescimento da população mestiça livre no Brasil colonial". Os dois aspectos -o da alforria e o da miscigenação- são relacionados por Luiz Felipe de Alencastro, no livro "O Trato dos Viventes" (Companhia das Letras, 525 págs., R$ 56,50), a uma comparação que leva o leitor de volta à África, onde este texto começou. Alencastro parte do pressuposto de que, no Brasil, houve a "invenção do mulato". O historiador considera que os negros alforriados não costumavam viver afastados porque, se confundidos com quilombolas (escravos fugitivos), poderiam ser capturados por capitães-do-mato. Assim, "a melhor garantia à preservação da liberdade consistia em aceitá-la como uma liberdade relativa, prestando serviços ao fazendeiro que reconhecesse e garantisse seu estatuto de não-escravo. Compactuada pela sujeição voluntária, a aproximação dos negros livres à comunidade patriarcal brasílica favorece a mestiçagem biológica". Na seqüência, com a aculturação, teria ocorrido o processo social da mestiçagem. Alencastro argumenta que, para que a mestiçagem conhecesse uma dinâmica regular, a comunidade dominante não poderia criar obstáculos intransponíveis à ascensão social do mulato. E sustenta que, de fato, o mulato, empregado em funções de segurança e como mão-de-obra mais qualificada, era favorecido em detrimento do negro. O mulato é típico do Brasil. Em Angola, onde as condições econômicas não eram as mesmas, o mulato é raro e a sociedade plurirracial nunca existiu. Alencastro conclui: "O fato de esse processo [de mestiçagem] ter se estratificado e, eventualmente, ter sido ideologizado e até sensualizado, não se resolve na ocultação de sua violência intrínseca, parte consubstancial da sociedade brasileira: em última instância, há mulatos no Brasil e não há mulatos em Angola porque aqui havia a opressão do escravismo colonial, e lá não".

Oscar Pilagallo, 49, é jornalista, editor da revista "EntreLivros" e autor de várias obras, entre elas "O Brasil em Sobressalto" (Publifolha).


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