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ARTIGO
A quinta corda
GEORGES BOURDOUKAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Tudo mudou e nada mudou.
Estou de volta a um reencontro com alguns personagens
que a história oficial quis ignorar
e, passados centenas de anos, os
oficialistas tentam deles se apossar utilizando o ardil das festas na
tentativa de se redimir. Zumbi, o
grande guerreiro, virou estátua.
Que o digam os ainda ignorados
Saifudin, o bravo mouro que pensou estar no paraíso assim que pisou a nova terra; Ben Suleiman, o
judeu que entendia a brutalidade
como inerente à natureza humana; Epaminondas Conde, o senhor de engenho que teve a ousadia de se apaixonar por um de
seus escravos; Maria Paim, a jovem branca que abandonou tudo
para viver um grande amor ao lado do chefe guerreiro.
Vejo-os nesse dia 20 de novembro (Dia da Consciência Negra),
reunidos no alto da serra da Barriga, assistindo à chegada da romaria dos justos, que até ali acorreu
utilizando-se de todos os meios
de transporte disponíveis. E na
falta destes, a pé ou a cavalo.
O vale verdejante, que se esparrama aos pés da serra e foi tão cobiçado pelos donos do poder do
passado, agora pertence a um ex-governador e a um ex-senador a
anunciar que tudo mudou, e nada
mudou. Esse mesmo vale, que no
século 17 produzia uma diversidade de alimentos, hoje é o símbolo da monocultura. São centenas de milhares, de milhões de pés
de cana-de-açúcar, testemunhas
indiferentes às louvações a Zumbi
e a seus guerreiros do quilombo
dos Palmares.
Não muito distante dali, esparramados à beira da estrada entre
Maceió e União dos Palmares,
centenas de famílias de sem-terra
agrupam-se diante dos intermináveis canaviais, aguardando a
oportunidade de voltar a produzir nova diversidade de alimentos.
A exclusão continua a mesma, a
solidariedade não.
Mas, e o paraíso do mouro, será
que continua o mesmo? Fosse lhe
dada oportunidade de se manifestar, o filho do Clemente e do Misericordioso, o construtor das fortificações do quilombo que obrigou os donos do poder a utilizar
pela primeira vez canhões em terra, diria que os excluídos de hoje
são os quilombolas de ontem.
Zumbi diria que eles são a sua
gente. Ou alguém duvida que os
escravos de ontem são os excluídos de hoje?
Negros arrancados de suas raízes, sofrendo com a cruz em brasa
penetrando nas carnes, afogados
em mares revoltosos e brutalizados em terras estranhas, vítimas
que perderam o passado, que não
viveram o presente porque o futuro não lhes reservou esperança.
Talvez faltasse a esta terra a
quinta corda do alaúde, a corda
da alma, assim denominada pelo
seu criador, o negro e polígrafo
muçulmano Ziriab, há 1.200 anos,
quando o alaúde possuía só quatro cordas representando os quatro elementos da natureza. Gratos
ficaram os médicos Avicena, Al
Kindi e Ar-Razi, excelentes alaudistas que graças à quinta corda
atingiam a alma de seus pacientes,
realizando curas através da música, conforme registros históricos.
Atrevo-me a afirmar que Zumbi
poderia ter sido essa quinta corda,
a alma que mudaria tudo mas
acabou vítima, ela também, da religião mercantilista e do temor.
No quilombo, a solidariedade
era negra. Na cidade, a falta de higiene, branca.
Afinal, não é a história que registra que mais da metade da população brasileira morreu vítima
do mal-de-bicho, epidemia assim
denominada por entenderem os
estudiosos da época que fora trazida pelos negros, a quem consideravam bichos sem alma? Matou
na cidade, mas não nos quilombos, porque não tinha nada a ver
com negros ou bichos, mas com a
limpeza.
No quilombo, a higiene também era negra.
Zumbi seria a quinta corda, que
foi eliminada porque a brutalidade dos senhores de engenho e dos
potentados não se encantava com
a música. Seus ouvidos estavam
preparados para o tilintar das
moedas, seus olhos para o brilho
do ouro, sua ética para o acúmulo
de riquezas. Duzentos anos depois, a brutalidade seria dirigida
contra os filhos de Allah, na Bahia, onde médicos faziam das
crianças escravas, cobaias, porque valiam menos que animais. E
mandavam matar os escravos que
atingiam a velhice para utilizar
suas parcas gorduras na produção de unguentos para evitar a
queda de cabelos.
Logo após a proclamação da Independência, ao custo de 2 milhões de libras esterlinas pagos a
Portugal a título de indenização, a
situação na Bahia era dramática.
Desemprego, inflação, revolta nos
quartéis, mendigos e retirantes da
seca, assaltos e pronto.
O palco estava armado. Do outro lado da escala social, uma aristocracia brutal que não titubeava
em assassinar crianças negras recém-nascidas para que as mães
servissem de amas-de-leite. Ao lado disso, meninas eram compradas, batizadas, estupradas e depois vendidas. Nesse cenário
acontecem as rebeliões dos malês,
que em árabe significa mestres.
Eram escravos muçulmanos,
prisioneiros de guerra ou vítimas
de sequestro, que sabiam ler e escrever num país onde menos de
7% da população branca era alfabetizada. Muitos dos malês eram
engenheiros, arquitetos, médicos
e havia um que, mesmo sendo
muçulmano, serviu de sacristão.
Foram mais de dez rebeliões: a
mais importante aconteceu em
1835, em Salvador, e passou para a
história com o nome de Revolta
dos Malês.
Mas esta já é outra história, com
outros registros.
Georges Bourdoukan, 58, é jornalista e
autor do livro "A Incrível e Fascinante
História do Capitão Mouro"
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