São Paulo, segunda-feira, 03 de dezembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

A quinta corda

GEORGES BOURDOUKAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Tudo mudou e nada mudou.
Estou de volta a um reencontro com alguns personagens que a história oficial quis ignorar e, passados centenas de anos, os oficialistas tentam deles se apossar utilizando o ardil das festas na tentativa de se redimir. Zumbi, o grande guerreiro, virou estátua.
Que o digam os ainda ignorados Saifudin, o bravo mouro que pensou estar no paraíso assim que pisou a nova terra; Ben Suleiman, o judeu que entendia a brutalidade como inerente à natureza humana; Epaminondas Conde, o senhor de engenho que teve a ousadia de se apaixonar por um de seus escravos; Maria Paim, a jovem branca que abandonou tudo para viver um grande amor ao lado do chefe guerreiro.
Vejo-os nesse dia 20 de novembro (Dia da Consciência Negra), reunidos no alto da serra da Barriga, assistindo à chegada da romaria dos justos, que até ali acorreu utilizando-se de todos os meios de transporte disponíveis. E na falta destes, a pé ou a cavalo.
O vale verdejante, que se esparrama aos pés da serra e foi tão cobiçado pelos donos do poder do passado, agora pertence a um ex-governador e a um ex-senador a anunciar que tudo mudou, e nada mudou. Esse mesmo vale, que no século 17 produzia uma diversidade de alimentos, hoje é o símbolo da monocultura. São centenas de milhares, de milhões de pés de cana-de-açúcar, testemunhas indiferentes às louvações a Zumbi e a seus guerreiros do quilombo dos Palmares.
Não muito distante dali, esparramados à beira da estrada entre Maceió e União dos Palmares, centenas de famílias de sem-terra agrupam-se diante dos intermináveis canaviais, aguardando a oportunidade de voltar a produzir nova diversidade de alimentos.
A exclusão continua a mesma, a solidariedade não.
Mas, e o paraíso do mouro, será que continua o mesmo? Fosse lhe dada oportunidade de se manifestar, o filho do Clemente e do Misericordioso, o construtor das fortificações do quilombo que obrigou os donos do poder a utilizar pela primeira vez canhões em terra, diria que os excluídos de hoje são os quilombolas de ontem.
Zumbi diria que eles são a sua gente. Ou alguém duvida que os escravos de ontem são os excluídos de hoje?
Negros arrancados de suas raízes, sofrendo com a cruz em brasa penetrando nas carnes, afogados em mares revoltosos e brutalizados em terras estranhas, vítimas que perderam o passado, que não viveram o presente porque o futuro não lhes reservou esperança.
Talvez faltasse a esta terra a quinta corda do alaúde, a corda da alma, assim denominada pelo seu criador, o negro e polígrafo muçulmano Ziriab, há 1.200 anos, quando o alaúde possuía só quatro cordas representando os quatro elementos da natureza. Gratos ficaram os médicos Avicena, Al Kindi e Ar-Razi, excelentes alaudistas que graças à quinta corda atingiam a alma de seus pacientes, realizando curas através da música, conforme registros históricos.
Atrevo-me a afirmar que Zumbi poderia ter sido essa quinta corda, a alma que mudaria tudo mas acabou vítima, ela também, da religião mercantilista e do temor.
No quilombo, a solidariedade era negra. Na cidade, a falta de higiene, branca.
Afinal, não é a história que registra que mais da metade da população brasileira morreu vítima do mal-de-bicho, epidemia assim denominada por entenderem os estudiosos da época que fora trazida pelos negros, a quem consideravam bichos sem alma? Matou na cidade, mas não nos quilombos, porque não tinha nada a ver com negros ou bichos, mas com a limpeza.
No quilombo, a higiene também era negra.
Zumbi seria a quinta corda, que foi eliminada porque a brutalidade dos senhores de engenho e dos potentados não se encantava com a música. Seus ouvidos estavam preparados para o tilintar das moedas, seus olhos para o brilho do ouro, sua ética para o acúmulo de riquezas. Duzentos anos depois, a brutalidade seria dirigida contra os filhos de Allah, na Bahia, onde médicos faziam das crianças escravas, cobaias, porque valiam menos que animais. E mandavam matar os escravos que atingiam a velhice para utilizar suas parcas gorduras na produção de unguentos para evitar a queda de cabelos.
Logo após a proclamação da Independência, ao custo de 2 milhões de libras esterlinas pagos a Portugal a título de indenização, a situação na Bahia era dramática. Desemprego, inflação, revolta nos quartéis, mendigos e retirantes da seca, assaltos e pronto.
O palco estava armado. Do outro lado da escala social, uma aristocracia brutal que não titubeava em assassinar crianças negras recém-nascidas para que as mães servissem de amas-de-leite. Ao lado disso, meninas eram compradas, batizadas, estupradas e depois vendidas. Nesse cenário acontecem as rebeliões dos malês, que em árabe significa mestres.
Eram escravos muçulmanos, prisioneiros de guerra ou vítimas de sequestro, que sabiam ler e escrever num país onde menos de 7% da população branca era alfabetizada. Muitos dos malês eram engenheiros, arquitetos, médicos e havia um que, mesmo sendo muçulmano, serviu de sacristão. Foram mais de dez rebeliões: a mais importante aconteceu em 1835, em Salvador, e passou para a história com o nome de Revolta dos Malês.
Mas esta já é outra história, com outros registros.


Georges Bourdoukan, 58, é jornalista e autor do livro "A Incrível e Fascinante História do Capitão Mouro"


Texto Anterior: Passado é presente em Penedo
Próximo Texto: Argentina insólita: Vales preservam tesouros históricos em Tucumán e Salta
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.