São Paulo, segunda-feira, 12 de fevereiro de 2001

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FRANÇA GÓTICA

Leitura dos cerca de 150 vitrais coloridos existentes na igreja deve ser realizada a partir do interior escuro

Vidros e luzes narram histórias da Bíblia

DO ENVIADO ESPECIAL A CHARTRES

Escrever com vidro e luz. Mas quem escreve afinal? E quem lê? A luz passa de fora para dentro das gigantescas colunas de vidro colorido e anima as histórias que se lê de dentro. Mas essas histórias foram compostas de dentro para fora e a luz é uma forma de leitura.
São mais de 150 vitrais cobrindo as paredes da catedral. O espaço é muito escuro quando se entra, o que só ajuda a apreciar as transparências desses painéis incríveis. São 2.600 metros quadrados de vidro distribuídos ao longo de todas as paredes do edifício.
Logo abaixo da rosácea oeste, que ilustra o Juízo Final, ficam os vitrais mais antigos. São do século 12 e pertenceram à catedral queimada em 1194. Chama a atenção, em particular, a árvore de Jessé, que narra a genealogia de Jesus em milhares de pedaços de vidro colorido, divididos em oito grandes quadrados, circulados por 16, emoldurados por 32.
"Narrar" é o verbo adequado: para compreender os vitrais, é preciso seguir as divisões, da esquerda para a direita e de baixo para cima. Saber a Bíblia de cor não chega a ser pré-requisito, graças aos guias (por escrito, gravados ou ao vivo). Mas só se pode ter idéia da dimensão do que está ali acompanhando, passo a passo, pelo menos alguns desses vitrais.
A catedral é isso mesmo: o livro dos livros, redigido em vidro e pedra. A catedral é o mundo, resumido e explicado em histórias, traduzidas em arquitetura, segundo alguns gênios anônimos dos séculos 12 e 13.
No centro da nave, esculpido no chão, fica o labirinto: 11 círculos concêntricos levando a uma rosácea no meio. Este tipo de desenho não era incomum na época e pode ser visto em várias outras catedrais. Peregrinos se arrastavam de joelhos por ele ao longo de um total de 260 metros. Para cumprir essa via-crúcis, não se leva menos de uma hora. Alegoria pequena para a via da vida.

Estatuária
A renda de pedra, de perto, transforma-se em vidas e nomes: Nicolau, Ambrósio, Jerônimo, Gregório. Vícios e virtudes, anjos, mártires, virgens.
Em toda a volta da catedral, em pórticos, colunas e nichos, multiplicam-se personagens relatando mudamente as histórias do Velho e do Novo Testamento.
Dentro da igreja, a procissão de pedra não é menor. A clausura do coro, erigida no século 16 pelo mesmo artista da torre, Jean Texier, faz de cada cantor uma repetição involuntária dos dramas monumentalizados ao redor.
Se for domingo, e um de sorte, você poderá, quem sabe, assistir à procissão dos sacerdotes. Todos de branco e dourado, carregando velas e incensórios e entoando hinos quase inaudíveis no mar de som do grande órgão. A fumaça da mirra se ergue em volutas, lentamente, até se perder no alto.
Esses 37 m de altura em pedra fazem diferença para os ouvidos, não menos do que para os olhos. As glórias do arco butante não são só para ver, são para ouvir.
Indiferente à outra procissão, quase sacrílega, de turistas, você (mais um turista) caminha com os olhos para cima e vê as perspectivas mudando a cada meia dúzia de passos. Assim como as histórias, que variam de leitor para leitor, também a catedral é única para cada um de nós. Vista de fora, ela é compreensível nos grandes volumes e linhas. Vista de dentro, ela ultrapassa a inteligibilidade assim como é ininteligível, também, a catedral sem a grandeza nem a forma de cada um de nós. (ARTHUR NESTROVSKI)


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