São Paulo, quinta-feira, 17 de abril de 2008

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MARCO ALEMÃO

Escritor fala da vida em Berlim e dá roteiro indispensável

Intelectuais foram atraídos pelo turbilhão de transformações entre o pós-Guerra e a queda do muro

DA REDAÇÃO

Como prêmio por ter ganhado a bolsa Kunstlerprogramm do DAAD (Deutscher Akademischer Austauschdienst; www.daad.de), em 1998, o roteirista Fernando Bonassi, 45, passou oito meses em Berlim, escrevendo a crônicas reunidas em "O Livro da Vida", lançado no Brasil pela editora Conrad. Aos 35 anos, seu compromisso nesse período foi o de escrever 24 horas por dia. Foi nesse momento e nessa cidade -onde morou pela primeira vez com sua mulher- que ele teve a certeza de que queria, de fato, ser escritor. Em entrevista à Folha, Bonassi contou como foram esses meses.

 

FOLHA - Historicamente, o que representava o ano de 1998, em que você morou em Berlim?
FERNANDO BONASSI
- Politicamente, o pano de fundo era de entrada do Partido Verde na administração do país e de Schröder como chanceler da Alemanha. Então, a cidade estava com um astral de esquerda superbacana. Eu, que sou de esquerda, estava muito feliz por estar lá. Isso realmente mudou a qualidade do Parlamento alemão, que ficou mais atento à coisa da ecologia.

FOLHA - E o clima da cidade?
BONASSI
- Berlim ainda não estava totalmente com a cara de shopping center que tem hoje -embora seja um shopping center de muito de bom gosto. Tinha ainda mais resquícios e rescaldos do período anterior, como muitos drogados facilmente encontráveis pela rua, aquela arquitetura devastada do Oriente e um programa de financiamento de reforma das fachadas. Eu achava fascinante ver que ninguém estava muito interessado em andar de carro, em perder tempo no tráfego. O transporte coletivo era muito bom, enquanto a gasolina era a coisa mais cara de Berlim. Outro tipo de encarar a idéia de cidade. Estar lá é como entrar num livro de história, mas de história humana mesmo.

FOLHA - O Mitte já era considerado referência no cenário cultural?
BONASSI
- Sim, já era o lugar pra você pegar os cineclubes, ir ao teatro... O mundo estava lançando os olhos para lá. Devia ter uma boa vanguarda no Ocidente, mas não era o momento deles. Assim como na literatura, agora, é melhor você ser iraquiano do que ser brasileiro.

FOLHA - Qual ponto turístico mais chamava sua atenção?
BONASSI
- A estátua daquele soldado muito alto e forte numa pracinha da periferia em TrepTower Park (um parque ao longo do rio Spree, em Treptow-Köpenick) me deu um deslumbramento. Aquilo lá, para mim, basta como experiência histórica do stalinismo. E aí você tem um campo de concentração nos arrabaldes da cidade, uma cena gay superbacana e a convivência com imigrantes turcos, africanos, iranianos... Berlim mistura tudo.

FOLHA - Como os alemães recebem esses imigrantes?
BONASSI
- Eu nunca vi nenhuma cena de preconceito explícito. Tive a impressão de que era o único lugar da Europa onde os estrangeiros se encontravam. Senti um bode menor em Berlim do que senti em Paris em relação aos árabes.

FOLHA - Dá para traçar algum paralelo com São Paulo?
BONASSI
- Em São Paulo é muito difícil você conhecer a história por trás das coisas. Porque a gente destrói. E o que sobra a gente não mostra muito, não renova, não conta. Há uma prática alemã de fazer isso. Berlim foi posta abaixo na Segunda Guerra e os caras reconstruíram igualzinho porque eles tinham guardado as plantas no porão. A gente não guardou a planta no porão, entende? O Brasil do passado não existe mais. É uma perda... Por outro lado, os alemães lidam muito tecnicamente com a tradição. Aqui a gente pode ousar. Aqui talvez seja mais fácil dirigir um filme mais cedo, se lançar e ser aceito pelo mercado. Lá há mais desconfiança.

FOLHA - Qual é sua dica de passeio imperdível para quem tem pouco tempo na cidade?
BONASSI
- Entre no circular que sai da estação Zoologischer Garten. Muito barato, ele vai até Berlim Oriental e depois volta para a estação. Se você der sorte de pegar um motorista legal, ele vai conversando em inglês, contando as coisas que aconteceram ali. Você vai passar por pelo menos seis lugares que já viu em algum filme de guerra. Então tem de pegar. É o que eu recomendo, mesmo para quem só vai fazer uma escala um pouco mais demorada em Berlim. Se der para passar no TrepTower Park no final de semana, vá ao mercado de pulgas nos galpões industriais abandonados. Os caras levam rádio velho, capacete, jeans por quilo, álbuns de fotografia de famílias que já não existem mais... Vale ir.

FOLHA - Alguma indicação de livro para começar a descobrir Berlim?
BONASSI
- Tem um livro chamado "A Última Batalha", do Cornelius Ryan, um jornalista de guerra, que fala muito do humor do berlinense quando a cidade estava no chão. Tipo, os caras se cumprimentavam e diziam: "Já comprou o caixão?"(PRISCILA PASTRE-ROSSI)


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