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MARCO ALEMÃO
Escritor fala da vida em Berlim e dá roteiro indispensável
Intelectuais foram atraídos pelo turbilhão de transformações entre o pós-Guerra e a queda do muro
DA REDAÇÃO
Como prêmio por ter ganhado a bolsa Kunstlerprogramm
do DAAD (Deutscher Akademischer Austauschdienst;
www.daad.de), em 1998, o roteirista Fernando Bonassi, 45,
passou oito meses em Berlim,
escrevendo a crônicas reunidas
em "O Livro da Vida", lançado
no Brasil pela editora Conrad.
Aos 35 anos, seu compromisso nesse período foi o de escrever 24 horas por dia. Foi nesse
momento e nessa cidade -onde morou pela primeira vez
com sua mulher- que ele teve a
certeza de que queria, de fato,
ser escritor. Em entrevista à
Folha, Bonassi contou como
foram esses meses.
FOLHA - Historicamente, o que representava o ano de 1998, em que
você morou em Berlim?
FERNANDO BONASSI - Politicamente, o pano de fundo era de
entrada do Partido Verde na
administração do país e de
Schröder como chanceler da
Alemanha. Então, a cidade estava com um astral de esquerda
superbacana. Eu, que sou de esquerda, estava muito feliz por
estar lá. Isso realmente mudou
a qualidade do Parlamento alemão, que ficou mais atento à
coisa da ecologia.
FOLHA - E o clima da cidade?
BONASSI - Berlim ainda não estava totalmente com a cara de
shopping center que tem hoje
-embora seja um shopping
center de muito de bom gosto.
Tinha ainda mais resquícios e
rescaldos do período anterior,
como muitos drogados facilmente encontráveis pela rua,
aquela arquitetura devastada
do Oriente e um programa de
financiamento de reforma das
fachadas. Eu achava fascinante
ver que ninguém estava muito
interessado em andar de carro,
em perder tempo no tráfego. O
transporte coletivo era muito
bom, enquanto a gasolina era a
coisa mais cara de Berlim. Outro tipo de encarar a idéia de cidade. Estar lá é como entrar
num livro de história, mas de
história humana mesmo.
FOLHA - O Mitte já era considerado
referência no cenário cultural?
BONASSI - Sim, já era o lugar pra
você pegar os cineclubes, ir ao
teatro... O mundo estava lançando os olhos para lá. Devia
ter uma boa vanguarda no Ocidente, mas não era o momento
deles. Assim como na literatura, agora, é melhor você ser iraquiano do que ser brasileiro.
FOLHA - Qual ponto turístico mais
chamava sua atenção?
BONASSI - A estátua daquele
soldado muito alto e forte numa pracinha da periferia em
TrepTower Park (um parque
ao longo do rio Spree, em Treptow-Köpenick) me deu um deslumbramento. Aquilo lá, para
mim, basta como experiência
histórica do stalinismo. E aí você tem um campo de concentração nos arrabaldes da cidade, uma cena gay superbacana e
a convivência com imigrantes
turcos, africanos, iranianos...
Berlim mistura tudo.
FOLHA - Como os alemães recebem esses imigrantes?
BONASSI - Eu nunca vi nenhuma cena de preconceito explícito. Tive a impressão de que era
o único lugar da Europa onde
os estrangeiros se encontravam. Senti um bode menor em
Berlim do que senti em Paris
em relação aos árabes.
FOLHA - Dá para traçar algum paralelo com São Paulo?
BONASSI - Em São Paulo é muito difícil você conhecer a história por trás das coisas. Porque a
gente destrói. E o que sobra a
gente não mostra muito, não
renova, não conta. Há uma prática alemã de fazer isso. Berlim
foi posta abaixo na Segunda
Guerra e os caras reconstruíram igualzinho porque eles tinham guardado as plantas no
porão. A gente não guardou a
planta no porão, entende? O
Brasil do passado não existe
mais. É uma perda... Por outro
lado, os alemães lidam muito
tecnicamente com a tradição.
Aqui a gente pode ousar. Aqui
talvez seja mais fácil dirigir um
filme mais cedo, se lançar e ser
aceito pelo mercado. Lá há
mais desconfiança.
FOLHA - Qual é sua dica de passeio
imperdível para quem tem pouco
tempo na cidade?
BONASSI - Entre no circular que
sai da estação Zoologischer
Garten. Muito barato, ele vai
até Berlim Oriental e depois
volta para a estação. Se você der
sorte de pegar um motorista legal, ele vai conversando em inglês, contando as coisas que
aconteceram ali. Você vai passar por pelo menos seis lugares
que já viu em algum filme de
guerra. Então tem de pegar. É o
que eu recomendo, mesmo para quem só vai fazer uma escala
um pouco mais demorada em
Berlim. Se der para passar no
TrepTower Park no final de semana, vá ao mercado de pulgas
nos galpões industriais abandonados. Os caras levam rádio
velho, capacete, jeans por quilo,
álbuns de fotografia de famílias
que já não existem mais... Vale
ir.
FOLHA - Alguma indicação de livro
para começar a descobrir Berlim?
BONASSI - Tem um livro chamado "A Última Batalha", do
Cornelius Ryan, um jornalista
de guerra, que fala muito do humor do berlinense quando a cidade estava no chão. Tipo, os
caras se cumprimentavam e diziam: "Já comprou o caixão?"(PRISCILA PASTRE-ROSSI)
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