São Paulo, quinta-feira, 24 de março de 2005

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MUNDO PERDIDO

Escalada até topo do platô na divisa de Brasil, Venezuela e Guiana requer preparo e desprendimento

Monte Roraima remete à viagem no tempo

RAUL INUI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, NA VENEZUELA

Pode parecer lugar-comum, mas avistar o monte Roraima alude a uma viagem no tempo e lembra cenário de ficção científica. Nuvens encobrem essa montanha que é uma das formações geológicas mais antigas do planeta, com 2 bilhões de anos. O caminho no qual se vêem flores únicas passa por planícies, vales e platôs -ali chamados de tepuis.
A expedição a esse canto do mundo, localizado na fronteira que divide Brasil, Venezuela e Guiana, em direção ao monte Roraima, passa por um dos mais belos tepuis da América do Sul, com 2.875 m de altitude, e pelo vizinho Kukenan. A aventura para conhecer esse lugar rodeado de vales, serras, rios, riachos e cachoeiras demanda seis dias. Nesse período, o viajante percorre longas trilhas, escala pedras e morros.
A atração é internacional e, embora o Brasil seja "dono" de 2,6% do monte Roraima, os verde-amarelos não são os maiores freqüentadores. Além disso, a escalada hoje é feita pela Venezuela, pois o acesso pelo Brasil é restrito.
O ponto de partida é Boa Vista. Da capital de Roraima até a cidade venezuelana de Santa Elena de Uairén, a mais próxima do parque Canaíma, na região da Grand Sabana, onde estão os tepuis Roraima e o "irmão" Kukenan, são 250 km. Mas, de Santa Elena, ainda são necessários mais 66 km para chegar a vila de San Francisco de Yuruaní e outros 18 km até a vila de Paraytepui, o real ponto de partida para a exploração rumo ao monte do Roraima, de cujo topo fica o ponto tríplice, local onde convergem as três fronteiras.
É bom avisar que é preciso muita perna, fôlego e um certo desprendimento, pois a hospedagem é feita em acampamentos sem nenhum luxo. O único conforto é a ajuda dos guias venezuelanos de tribos indígenas, que podem ser contratados como carregadores, o que alivia o peso.
Por todo o trajeto a impressionante dimensão das mesas vai se aproximando. A primeira visão dos tepuis já é testemunhada na estrada que interliga Santa Elena a San Francisco de Yuruaní. Nos dois primeiros dias, os aventureiros caminham por uma vegetação rasteira, onde há cascavéis, que parece uma savana. Cruzam-se córregos e os rios Tek e Kukenan.
No terceiro dia ocorre a escalada final ao cume do monte Roraima. Depois de muito sol e calor durante a primeira fase da expedição, esse é o momento em que a neblina toma conta. A floresta fica mais densa, e as subidas, mais íngremes. Avistam-se de perto paredões e quedas-d'água que dão encanto ao caminho.
A visão das pedras na beira do cume preconiza a chegada a um certo canto místico. Ao longo dessa última etapa de ascensão, todo o vale que fica para trás acompanha o expedicionário, dando a impressão de que se está saindo da terra e chegando ao céu.
Aumenta a expectativa de ver de perto as formações mais antigas do planeta que o tempo e a erosão não corroeram. Foram mantidas suas formas originais -as constantes chuvas, neblina e sol forte não bastaram para levar suas pedras a sedimentar nos rios amazônicos.
Momento clássico: no topo do platô, a sensação é a de estar em uma cena de um filme pré-histórico. Dá para compreender a inspiração que o escritor Arthur Conan Doyle (1859-1930) -sim, o criador de Sherlock Holmes- captou no local e incluiu na obra "O Mundo Perdido". Não é à toa que muitos visitantes levam debaixo do braço um exemplar do livro (leia ao lado).
A próxima parada fica nas grutas onde são montados novos acampamentos, chamados aqui de hotéis. Faixas estreitas encostadas nas pedras alocam as barracas e dão a visão de uma paisagem fantástica sobre o vale, acompanhados das beiradas dos tepuis. As cores do crepúsculo e do alvorecer completam a magia do lugar, sem contar a incrível visão das pedras e dos vales durante a noite com a luz da lua.
O quarto dia é dedicado à visita do platô. Caminha-se entre vales e pântanos. Vêem-se pedras de diversas formas e que são alimento para a imaginação. Há exemplares que lembram naves interplanetárias, outros que trazem à memória um casal se beijando, outros que parecem uma tartaruga ou um elefante. As formações de pedra, em meio à névoa, ficam ainda mais misteriosas, proporcionando visões de animais e objetos em movimento. Em muitos momentos parece mais um sítio arqueológico ou um museu de formas, no qual ficaram petrificadas as almas que passaram por ali.
Os córregos e os lagos equilibram a inóspita paisagem com uma vegetação peculiar. Aliás, endêmica, porque há plantas exclusivas da região. Há muitas bromélias, orquídeas, samambaias e canelas-de-ema. Algumas plantas são carnívoras, e há até sapos que não pulam. A riqueza e o exotismo da flora e da fauna locais atraem muitos botânicos e biólogos. Completam a aventura, além do marco fronteiriço, o poço Azul, uma linda lagoa dentro de um buraco, o qual tem paredes que parecem árvores petrificadas.
Cada passagem de um vale a outro, como o vale dos Cristais, é única. A descida no dia seguinte é o início da despedida da visita. A caminhada exige joelhos e pernas resistentes. Ao descer, o peso pousa sobre os joelhos, e cada passo pode ser uma pancada nos tendões e ligamentos. Para evitar contusões ou estresse nas articulações é preciso descer com cuidado, mas, mesmo assim, os joelhos demonstram seus limites com algumas dores para alguns.
O retorno em dois dias com pernoite do outro lado do rio Tek é um alívio para quem temia a dificuldade do desafio. Ao chegar em Paraytepui, a sensação de que tudo deu certo e de que a missão foi cumprida é soberba.


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