São Paulo, segunda-feira, 27 de setembro de 2004

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MUSEU DE TUDO

"Casa" de Goya e Velázquez usa poucos artifícios para ser considerado um dos melhores do mundo

Prado é o mesmo desde sempre (e que assim seja)

CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Em um belo dia de 1999, o artista inglês Mat Collinshaw colocou uma venda em seus olhos, no seu estúdio em Londres, e, guiado por uma assistente, seguiu até o aeroporto e embarcou para Madri.
De olhos bem vendados, e sempre filmado pela sua "guia", ele foi conduzido até a sala número 3 do Museu do Prado. A moça desamarrou cuidadosamente o pano preto e eis que Collinshaw estava diante da tela "As Meninas", de Diego Velázquez (1599-1660).
Essa performance abre nossos olhos para um óbvio ululante: qualquer amante da arte, de Labrador a Vladivostok, adoraria passar por algo parecido. Qualquer amigo do belo adoraria abrir os olhos repentinamente no cômodo 3 do Museu do Prado.
A enquete realizada pelo caderno Turismo só reforça. O majestoso casarão do Paseo del Prado ficou entre os três mais citados pelos entrevistados. E o mesmo poderia ter acontecido se a pesquisa tivesse sido feita dez, 50 ou 200 anos atrás.
As coisas mudaram e mudam muito pouco nos dois séculos desse museu, mesmo ele tendo passado por recentes ampliações. Um visitante de 1888 e um da semana passada veriam praticamente as mesmas maravilhas, nos mesmos corredores altos, um tanto escuros, que terminam em largas portas abauladas.
E os corredores, as largas portas, o cheiro de história são o que menos importam no casarão neoclássico projetado em 1785 pelo arquiteto Juan de Villanueva e inaugurado em 1819. Se em boa parte dos museus recentes, seja no paulistano MuBE, seja no Guggenheim de Bilbao, o prédio é ator principal, no Prado não é incomum esquecer que existe uma construção cercando os Goyas, El Grecos & companhia.
Esqueça a lojinha -não é das dez melhores-, não coma nem sob tortura a paella do restaurante abafado no subsolo, não tente se guiar pelo site, dos mais modestos entre os dos grandes museus do mundo, não espere mostras temporárias de abalar suas estruturas.
O negócio aqui é pintura, um acervo da melhor pintura de uma das melhores escolas pictóricas de todos os tempos: a Espanha dos séculos 16 a 18. O Prado tem 8.600 telas (das quais pouco mais de mil expostas). É um bocado, mas bastariam umas 50 para fazerem dele um dos melhores do mundo.
Dos oito núcleos nos quais está organizado, desde priscas eras, não existe dúvida de que o módulo "Pintura Española" é imbatível. É ali que moram, literalmente, as jóias da coroa. Criado com inspiração no Louvre, pelo rei Carlos 3º (conhecido pela alcunha de "o melhor prefeito da história de Madri"), o Prado tem até hoje como parte mais substancial de seu elenco pictórico as obras vindas das coleções reais.
Como é sabido, pintores do porte de Velázquez trabalharam fartamente para esses monarcas. E foi assim que esse artista acabou sendo o responsável pela escolha dos trabalhos de Ticiano (1485-1576) que hoje são exibidas no núcleo de pintura italiana, ao lado de ótimos Tintorettos e Veroneses.
O terceiro módulo importante do museu é o de pintura flamenga. A coleção de obras do delirante Hieronymus Bosch (1450-1516), incluídas aí obras-primas como "O Jardim das Delícias" ou "Os Sete Pecados Capitais", é das melhores do mundo.
Mas não foi para nenhuma delas que Mat Collinshaw vendou e desvendou seus olhos. O destaque máximo, a "Mona Lisa" do Prado, é mesmo "As Meninas" (1656). Livros inteiros já foram escritos sobre a tela e seus mistérios -e não seria este o espaço de sondá-los (indicação para isso é o livreto "Las Meninas", de Fernando Marías Franco, ed. Electa, Madri).
O espaço vai acabando, aliás, e nem chegamos ao outro astro do Paseo del Prado, Francisco de Goya (1746-1828). É ali no Prado que moram boa parte de suas obras maiorais, das sensuais "Maias" às Pinturas Negras (como a horripilantemente linda "Saturno Devorando um de Seus Filhos"). É ali também que vive a pequenina "El Perro Semihundido". Pintada por volta de 1820, retrata não mais do que uma cabeça de um cão acinzentado no canto inferior de uma tela quase toda da cor de areia.
Taí, decidi. Se um dia me vendarem os olhos, só quero que os desvendem em frente de "El Perro Semihundido".


MUSEU DO PRADO - Paseo del Prado, s/nº. De terça a domingo, das 9h às 19h. Fechado às segundas. Ingresso custa 3,01; http://museoprado.mcu.es.


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