São Paulo, domingo, 24 de setembro de 2000

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CRÍTICA

A bela e as feras

ARMANDO ANTENORE

NO DOMINGO retrasado, dia 10, a jovem Fernanda de Oliveira tinha um par incomum de olhos verdes, os cabelos loiros, a pele morena e não tinha muito mais. Não tinha emprego, casa ou documento. Não sabia ler nem escrever. De origem cigana, suja, despenteada, perambulava por São Paulo. Às vezes, reivindicava esmolas. Um garoto de 3 anos, igualmente loiro, a seguia. Era Caio, filho único que gerou com Adilson Alves, também jovem, analfabeto e desempregado, mas dono de olhos e cabelos escuros.
Na segunda-feira, dia 11, a Folha publicou um retrato de Fernanda e Caio. A foto abria a coluna de Mônica Bergamo -ocorrência tão rara quanto aqueles olhos verdes. A menina que não dispunha de quase nada agora conquistava espaço nobre no jornal. Um título curto se associava à imagem, "A Bela das Ruas", e uma legenda esclarecia: Fernanda, de 18 anos, deixara Minas depois de perder as poucas posses numa enchente. Pedia dinheiro porque sonhava em voltar.
Da coluna social, mãe e filho saltaram para a televisão. Apareceram no "Fantástico", no "SuperPop", de Adriane Galisteu, e no "Mulheres", de Márcia Goldschmidt.
Hoje, embora mal compreenda matemática, Fernanda faz contas. Já ganhou: uma casa mobiliada na periferia paulistana, com aluguel e despesas pagas por um ano; cestas básicas; tratamento dentário e roupas de três confecções esportivas. Uma agência de modelos a fotografou. Ofereceu-lhe um "book" e a promessa de que, um dia, ocupará as capas de revista. Um deputado federal vai tirar a documentação da família. A moça ainda arranjou emprego para o marido e vaga num curso de alfabetização. Não quer mais voltar.
Cada um dos regalos, conseguiu por força da TV. Foi nos programas de Adriane e Márcia que conheceu os interessados em ajudá-la.
Certamente Fernanda não desconfia, mas está encarnando a versão contemporânea do "Boa-Noite, Cinderela", quadro longínquo de Silvio Santos. Se a lembrança não me falha, funcionava assim: o apresentador narrava a trajetória de três garotas humildes. A protagonista do relato mais triste terminava a noite num cenário de sonhos: um príncipe calçava-lhe sapatinhos dourados e a conduzia para um trono pequenino, rodeado de brinquedos. Bonecas, ursos de pelúcia, bolas, panelinhas, bicicleta, trenzinho elétrico e autorama. A felizarda levava todo o tesouro.
Corria a década de 70, e, ensinam os teóricos, Silvio Santos representava de modo carnavalesco o Estado paternal, populista, que protege e alimenta os desvalidos. Muitos domingos depois, o homem do baú continua distribuindo mimos. Só que, logo aprendemos, o Estado mudou, e já não convém que dê nada para Adilson, Caio ou Fernanda. O mercado, sim, pode dar. Ou melhor, trocar.
Sem possuir coisa nenhuma, Fernanda exibe moeda preciosa: os olhos verdes, os cabelos loiros. Habilita-se, então, a negociar com o mercado. Uma canção dos Titãs diz que miséria é miséria em qualquer canto. Riquezas são diferentes. A mãe de Caio não é rica. Ocorre que -bela na miséria- é diferente, e o paradoxo lhe confere valor de troca. Torna-a sensacional. Converte Fernanda em notícia. A mídia (e toda sorte de agregados) desfruta da beleza inusitada, fora de lugar, e retribui com presentes.
Por outro lado, as ofertas não surgem somente porque a moça, bela, ascendeu à condição de "pessoa pública". Bela e pública, Fernanda já devia se sentir há tempos. Afinal, os olhos verdes moravam na rua. Tal condição, porém, não atraiu o príncipe dos sapatinhos. Os benfeitores apenas se manifestaram quando os meios de comunicação avalizaram a beleza. Foi preciso que o jornal e a TV alertassem: "Vêem esta menina aqui? Ela agora é Cinderela".
O fotógrafo Carlos Gama Jr. -free-lancer de publicações sobre moda e arquitetura- a notou primeiro. Numa manhã fria de agosto, avistou Fernanda e Caio perto do estúdio em que trabalha. "Pareceu-me uma cena do Leste Europeu. Mãe e filho lindos, vagando tristes pela cidade." Em vez de ceder uns trocados, Gama Jr. preferiu levá-los para o estúdio e os retratou do jeito que estavam. Depois, gratuitamente, entregou a foto às redações. "Pensei: se divulgarem, talvez algo aconteça."
Aconteceu. A produção do "SuperPop" apresentou Fernanda à diretora de "new faces" da Elite Models, que deu um banho de loja na garota. Providenciou-lhe maquiagem e penteado fashion, patrocinou o "book". Tudo devidamente registrado pelas câmeras do programa.
Nos bastidores do "Mulheres", Fernanda encontrou dois empresários artísticos e sete pagodeiros. Os nove entraram em contato com uns tantos amigos e acabaram descolando a casa, os alimentos, o emprego, as roupas, a documentação e o dentista -o mesmo da Tiazinha e da Feiticeira. Garantem que não desejam contrapartidas. "Veja bem, irmão. Não iremos procurar ninguém, mas, se jornalistas baterem em nossa porta, não vamos esconder o que fizemos, né?", pondera um dos empresários.
No meio dos holofotes, Fernanda se revela principalmente confusa. "Quando a gente não estuda, não vê o mundo direito. As pessoas que frequentaram a escola falam difícil, e a gente não pega as expressões. Eles proseiam, a gente ri e finge que entende para não passar vergonha. Outro dia, na televisão, a repórter me perguntou: "Você é vaidosa?". Fiquei muda, só sorrisinho. Sabe por quê? Porque nem imagino o que significa essa palavra, vai-do-sa."


E-mail: aluis@folhasp.com.br



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