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CRÍTICA
A bela e as feras
ARMANDO ANTENORE
NO DOMINGO retrasado, dia 10, a jovem Fernanda de Oliveira tinha um par incomum de olhos
verdes, os cabelos loiros, a pele morena e não tinha
muito mais. Não tinha emprego, casa ou documento. Não sabia ler nem escrever. De origem cigana, suja, despenteada, perambulava por São Paulo. Às vezes, reivindicava esmolas. Um garoto de 3 anos, igualmente loiro, a seguia.
Era Caio, filho único que gerou com Adilson Alves, também
jovem, analfabeto e desempregado, mas dono de olhos e cabelos escuros.
Na segunda-feira, dia 11, a Folha publicou um retrato de Fernanda e Caio. A foto abria a coluna de Mônica Bergamo
-ocorrência tão rara quanto aqueles
olhos verdes. A menina que não dispunha de quase nada agora conquistava espaço nobre no jornal. Um título curto se
associava à imagem, "A Bela das Ruas", e
uma legenda esclarecia: Fernanda, de 18
anos, deixara Minas depois de perder as
poucas posses numa enchente. Pedia dinheiro porque sonhava em voltar.
Da coluna social, mãe e filho saltaram
para a televisão. Apareceram no "Fantástico", no "SuperPop", de Adriane Galisteu, e no "Mulheres", de Márcia
Goldschmidt.
Hoje, embora mal compreenda matemática, Fernanda faz contas. Já ganhou:
uma casa mobiliada na periferia paulistana, com aluguel e despesas pagas por
um ano; cestas básicas; tratamento dentário e roupas de três
confecções esportivas. Uma agência de modelos a fotografou. Ofereceu-lhe um "book" e a promessa de que, um dia,
ocupará as capas de revista. Um deputado federal vai tirar a
documentação da família. A moça ainda arranjou emprego
para o marido e vaga num curso de alfabetização. Não quer
mais voltar.
Cada um dos regalos, conseguiu por força da TV. Foi nos
programas de Adriane e Márcia que conheceu os interessados em ajudá-la.
Certamente Fernanda não desconfia, mas está encarnando
a versão contemporânea do "Boa-Noite, Cinderela", quadro
longínquo de Silvio Santos. Se a lembrança não me falha,
funcionava assim: o apresentador narrava a trajetória de três
garotas humildes. A protagonista do relato mais triste terminava a noite num cenário de sonhos: um príncipe calçava-lhe sapatinhos dourados e a conduzia para um trono pequenino, rodeado de brinquedos. Bonecas, ursos de pelúcia, bolas, panelinhas, bicicleta, trenzinho elétrico e autorama. A felizarda levava todo o tesouro.
Corria a década de 70, e, ensinam os teóricos, Silvio Santos
representava de modo carnavalesco o Estado paternal, populista, que protege e alimenta os desvalidos. Muitos domingos depois, o homem do baú continua distribuindo mimos.
Só que, logo aprendemos, o Estado mudou, e já não convém
que dê nada para Adilson, Caio ou Fernanda. O mercado,
sim, pode dar. Ou melhor, trocar.
Sem possuir coisa nenhuma, Fernanda exibe moeda preciosa: os olhos verdes, os cabelos loiros. Habilita-se, então, a
negociar com o mercado. Uma canção dos Titãs diz que miséria é miséria em qualquer canto. Riquezas são diferentes. A
mãe de Caio não é rica. Ocorre que -bela na miséria- é diferente, e o paradoxo lhe confere valor de troca. Torna-a sensacional. Converte Fernanda em notícia. A mídia (e toda sorte de agregados) desfruta da beleza inusitada, fora de lugar, e
retribui com presentes.
Por outro lado, as ofertas não surgem somente porque a moça, bela, ascendeu à condição de "pessoa pública". Bela e pública,
Fernanda já devia se sentir há tempos. Afinal, os olhos verdes moravam na rua. Tal
condição, porém, não atraiu o príncipe dos
sapatinhos. Os benfeitores apenas se manifestaram quando os meios de comunicação
avalizaram a beleza. Foi preciso que o jornal
e a TV alertassem: "Vêem esta menina aqui?
Ela agora é Cinderela".
O fotógrafo Carlos Gama Jr. -free-lancer
de publicações sobre moda e arquitetura- a
notou primeiro. Numa manhã fria de agosto, avistou Fernanda e Caio perto do estúdio
em que trabalha. "Pareceu-me uma cena do
Leste Europeu. Mãe e filho lindos, vagando
tristes pela cidade." Em vez de ceder uns trocados, Gama Jr. preferiu levá-los para o estúdio e os retratou do jeito que estavam. Depois, gratuitamente, entregou a foto às redações. "Pensei: se divulgarem, talvez algo aconteça."
Aconteceu. A produção do "SuperPop" apresentou Fernanda à diretora de "new faces" da Elite Models, que deu um
banho de loja na garota. Providenciou-lhe maquiagem e
penteado fashion, patrocinou o "book". Tudo devidamente
registrado pelas câmeras do programa.
Nos bastidores do "Mulheres", Fernanda encontrou dois
empresários artísticos e sete pagodeiros. Os nove entraram
em contato com uns tantos amigos e acabaram descolando a
casa, os alimentos, o emprego, as roupas, a documentação e
o dentista -o mesmo da Tiazinha e da Feiticeira. Garantem
que não desejam contrapartidas. "Veja bem, irmão. Não iremos procurar ninguém, mas, se jornalistas baterem em nossa porta, não vamos esconder o que fizemos, né?", pondera
um dos empresários.
No meio dos holofotes, Fernanda se revela principalmente
confusa. "Quando a gente não estuda, não vê o mundo direito. As pessoas que frequentaram a escola falam difícil, e a
gente não pega as expressões. Eles proseiam, a gente ri e finge que entende para não passar vergonha. Outro dia, na televisão, a repórter me perguntou: "Você é vaidosa?". Fiquei
muda, só sorrisinho. Sabe por quê? Porque nem imagino o
que significa essa palavra, vai-do-sa."
E-mail: aluis@folhasp.com.br
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