São Paulo, sábado, 22 de dezembro de 2007

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MOACYR SCLIAR VAI ÀS COMPRAS
[colunista em campo]

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES

Louco pela "emoção da busca", escritor visita sebos porque "nem sempre o que surpreende é novo"

Beto Scliar/Folha Imagem
Apaixonado por letrinhas, Moacyr Scliar gosta de descobrir raridades na livraria Mosaico, em Porto Alegre


MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

Comprar livros pode ser uma coisa muito simples. Por exemplo: o colégio fornece uma lista de textos didáticos -basta ir à livraria e adquiri-los. Ou então, numa roda de amigos, comenta-se o último best-seller, que desperta nossa curiosidade. Podemos comprá-lo inclusive sem sair de casa, pela internet.
Mas comprar livros é mais do que isso. É uma verdadeira aventura intelectual, equivalente às viagens que faziam os descobridores marítimos. A comparação é mais do que adequada, porque, em ambos os casos, trata-se de rumar para o desconhecido, seja em busca de novas terras no sentido geográfico, seja em busca de novos territórios no universo da imaginação e da cultura.
Nesse sentido, os estabelecimentos que vendem livros usados, os populares sebos (convenhamos, mereciam uma denominação melhor, que não aludisse somente à gordura que os dedos deixam nas páginas) são exemplares. O que, até certo ponto, parece uma contradição: novidades, onde só existem obras antigas? Pode?
Pode. Exatamente porque, nos livros, nem sempre o que é novo surpreende, e nem sempre o que surpreende é novo. Obras de valor transcendem o tempo. Até hoje "Dom Quixote", escrito no começo do século 17, encanta os leitores. E o mesmo podemos dizer de um Machado de Assis. Essas obras foram preservadas porque, apesar de tudo, o livro, um objeto que tem mais de cinco séculos, continua prático e acessível e, em muitos casos, conserva-se de forma notável, seja nas bibliotecas, seja nos sebos.
Ao entrar num sebo, todas as surpresas são possíveis. De repente encontramos, no fundo de uma prateleira, um livro do grande Guimarães Rosa, autografado pelo autor. Nosso coração bate mais forte, enquanto folheamos a obra com mão trêmula. Sim, porque literatura é fundamentalmente emoção, e o livro, que dá suporte material à literatura, pode também veicular essa emoção.
É só através da emoção que podemos entender a figura do bibliófilo, da qual José Mindlin é exemplo. São pessoas apaixonadas pelos livros, gente que dedica boa parte de suas vidas à busca de raridades bibliográficas. Uma busca sem fim: Mindlin teve de construir um prédio só para abrigar a sua famosa biblioteca. Claro, há problemas aí. Raridades podem custar caro. E estamos falando de livros em quantidades imensas.
Em Nova York há um sebo famoso, o Strand, cuja propaganda nos jornais fala em 12 milhas de prateleiras de livros. Doze milhas é uma distância que, para um leitor, exige anos para ser percorrida. Entrar no Strand, como entrar em outros sebos desse tamanho, é uma experiência na qual o êxtase se associa ao terror. Já em Porto Alegre, onde moro, os sebos são menores e mais acolhedores. Além disso, muitos deles se localizam numa mesma rua do centro, a Riachuelo, de modo que o bibliófilo tem suas buscas consideravelmente facilitadas.
"Prazer do Texto" foi o título que o ensaísta francês Roland Barthes deu a um de seus livros. A livraria e o sebo associam o prazer do texto com a emoção da busca. Em matéria de compras é uma experiência para ninguém botar defeito.


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