As lições do futebol

Sem a velocidade que tinha aos 23 anos, Cristiano Ronaldo, 33, optou por se reinventar

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Era Albert Camus quem dizia que as coisas mais importantes da vida foram aprendidas num campo de futebol. Não vou tão longe. Mas como negar que o futebol dá o seu contributo, e não apenas para sabermos a profissão da mãe do juíz?

Vou divagar um pouco. Só um pouco. Tenha paciência, leitor. De vez em quando, encontro amigos que já não vejo há 20 anos. Talvez mais. É sempre uma ocasião festiva. Mas confesso que, instintivamente, dou por mim a dividi-los em dois grupos: os adaptados e os inadaptados.

Os primeiros souberam adaptar-se aos imperativos da idade. Os segundos ficaram nos últimos anos do último século e recusam-se a entrar no novo milênio.

Os primeiros exibem barrigas, escassez de cabelo, algumas próteses (essa inventei) sem vergonha ou culpa. Ou com uma vergonha moderada e uma culpa “idem”.

Os segundos são adultos de 42 em roupas de 22. Ou de 12, melhor dizendo. E, em matéria capilar, digamos apenas isso: um deles tem agora mais cabelo do que quando o conheci (não faça essa cara, Paulo; é verdade; todo mundo sabe que é implante). 

Longe de mim moralizar os meus amigos. Mas desconfio que a adaptação não é apenas um imperativo da seleção natural. É uma condição de sanidade porque, como dizia o poeta, no final a casa sempre ganha (antes que os leitores eruditos me perguntem quem é esse poeta, digo já: ninguém; também inventei).

Se assim é na vida, que dizer das artes? A mesma coisa. Tempos atrás, li algures que o pianista Arthur Rubinstein, quando sentiu que a destreza física já não era a mesma, não caiu na tentação fatal de continuar a tocar o mesmo repertório da juventude ou da meia idade.

Não, não: escolheu repertórios mais limitados e compensou os estragos da velhice com mais prática e uma imaginativa “performance” dos tempos. Rubinstein morreu aos 95 anos e teve uma carreira de 85. 

E o que tem tudo isso a ver com futebol? Duas palavras: Ronaldo e Messi. Ou três: Ronaldo, Messi e adaptação.

O Wall Street Journal publicou um ensaio sobre ambos para dizer duas coisas —uma óbvia, outra menos óbvia: primeiro, que os melhores jogadores da atualidade nunca ganharam a Copa do Mundo; e, segundo, que os craques já não jogam como jogavam— uma evidência no caso de Ronaldo.

Quando recuamos dez anos, encontramos um rapaz de 23 que rivalizava com Usain Bolt na forma como descia pelo corredor lateral, destroçava a defesa e fuzilava o goleiro.

Aos 33, Ronaldo já não tem a velocidade dos 23. Duas hipóteses: persistir na fantasia de que ainda está no início da carreira e arrastar-se pelos campos; ou, então, reinventar-se como jogador.

Ronaldo, com inteligência exemplar, optou por reinventar-se. Não é possível correr e driblar como antigamente? Pois bem: é possível ser um centroavante —e refinar, quase até à perfeição, o chute e as cabeçadas estratosféricas.

O rapaz de 23 ganhava títulos e troféus. O homem de 33 continua a ganhar —com um repertório diferente. Quando já não podemos tocar as grandes composições de Chopin, existem pequenas joias de Mozart. Arthur Rubinstein que o diga.

E para o leitor descontente com a idade, que pensa muitas vezes nos anos gloriosos que já não voltam, a mesma palavra: adaptação. Quem sabe? Nos melhores casos, será possível descobrir que o jogo da vida também tem prorrogação —e que, às vezes, menos é mais.

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