Caixa dois não tem recibo

Reportagem sobre uso de WhatsApp na campanha teve reação recorde

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A dez dias da eleição presidencial, a primeira página da Folha estampou a manchete: “Empresas bancam disparo de mensagens anti-PT nas redes”. A reportagem revelava que grupos privados como o Havan, do empresário Luciano Hang, declaradamente apoiador da candidatura de Jair Bolsonaro, agiam de forma a interferir na disputa.

A reportagem se tornou o texto que, individualmente, mais gerou comentários à ombudsman em 2018. A maioria criticou o jornal por publicar acusação tão grave, supostamente sem oferecer evidências.

Nas palavras dos leitores: “sem qualquer embasamento ou prova material; nenhum contrato é citado, nenhuma fonte é mencionada”; “não aponta nenhum fato concreto, indício ou prova”.

Fui insistentemente cobrada a me manifestar sobre a reportagem. Volto a ela um mês após sua publicação não só pelo compromisso com o leitor, mas porque, na última semana, o jornal voltou a ser pressionado “a se retratar”.

A reportagem em debate recorre à expressão “a Folha apurou”, indicativa de informação anônima comprovada pelo jornal, para relatar que cada contrato de impulsionamento chegava a R$ 12 milhões.

Classificava a operação de ilegal, pois se tratava de doação de campanha por empresas e de compra de base de usuários, ambas as ações vedadas pela legislação eleitoral. Detalhava o nome de agências que ofereciam esse serviço (Quickmobile, Yacows, Croc e SMS Market), o preço e como funcionava.

Empresas negaram o disparo de mensagens políticas, não se manifestaram ou não foram encontradas. O dono da Havan negou o financiamento ilegal e anunciou processo contra a Folha. Jair Bolsonaro disse não ter controle sobre eventual ação de empresários.

Como a Folha obteve tais informações? Teve acesso a contratos? Viu trocas de mensagens? Falou com pessoas das empresas, das agências ou da campanha que pediram sigilo da própria identidade? Quantas fontes tem o jornal? Que tipo de relação elas têm com a informação principal? Tais questões ficaram no ar. 

Obtive algumas respostas após questionar a direção da Folha. “A reportagem foi apurada com pessoas que tiveram acesso direto às negociações para o disparo maciço de mensagens. Os documentos prospectados não podem ser publicados, pois revelariam a identidade de indivíduos que só aceitaram repassar informações sob o compromisso de anonimato”, afirmou Vinicius Mota, secretário de Redação.

Só na edição impressa da véspera da eleição (e na versão digital do dia 26) o jornal publicou reportagem produzida por repórteres do UOL com “novos indícios sobre o esquema” revelado na Folha.

Nela, afirma-se que dados de um serviço de disparo de mensagens em massa via WhatsApp aos quais a reportagem teve acesso revelam que o sistema “deixou rastros” que mostram que, na tarde de 18 de outubro, foram apagados os registros de envio de mensagens disparadas pela campanha de Bolsonaro —horas depois da publicação da reportagem da Folha.

Detalha o tipo e a origem das informações, apresenta documentos e cita um especialista em segurança virtual que apresentou informações sob a condição de anonimato. Esse texto, assim como outros que se seguiram, reforçou a apuração inicial da Folha.

Foi a manifestação das gigantes da internet, em resposta a questionamentos do Tribunal Superior Eleitoral, que reacendeu o ímpeto de leitores. Twitter, Facebook e WhatsApp disseram que os perfis do presidente eleito e de seu partido, o PSL, não contrataram serviço de disseminação de mensagens em massa em suas plataformas. Deixaram, entretanto, de responder se outras pessoas ou empresas o fizeram por eles.

Não será essa a primeira reportagem investigativa que apresentará fatos verdadeiros, desacompanhados dos desejáveis documentos ou declarações comprobatórias. Disfarçar em ações privadas a doação ilegal de dinheiro ou o estímulo financeiro a movimentos em favor de políticos é uma característica das campanhas modernas. Essas ações, naturalmente, não deixam recibo ou documento escrito. Uma apuração séria e consistente pode prescindir deles.

Avalio importante e necessária a reportagem sobre o impulsionamento ilegal em favor de Bolsonaro. É apuração difícil, que, com meandros obscuros a desvendar, abre um caminho rico a ser explorado. No entanto, entendo que o jornal falhou na forma narrativa de apresentá-la ao leitor.

A construção técnica do texto e dos enunciados —da primeira página e internos— poderia ser mais precisa e transparente. Faltaram detalhes que corroborassem as evidências, mesmo sem que fontes fossem reveladas. Essa fragilidade gerou dúvidas nos leitores. Serve de alerta. Obriga a Folha a não esmorecer nem dar por encerrada a investigação.

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