Sabedoria de velório
A erudição fúnebre é fruto do estudo, não de uma vocação íntima
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Um amigo morre e logo alguém nos conforta: "Ele vai estar lá em cima a olhar para ti." Como assim, a olhar para mim? Se for verdade, lamento a minha sorte e a do meu amigo. A minha, porque não voltarei a estar à vontade, sabendo que o Fernando segue todos os meus passos; a dele, porque a minha vida é muito desinteressante.
Que tipo de entretenimento têm eles no céu para que o Fernando prefira passar a eternidade a olhar para mim? Bach não toca? Chaplin não atua? Shakespeare não declama? Por que é que o Fernando deseja ver-me, digamos, a escovar os dentes? Ele não era assim em vida. Nunca manifestou interesse em minha higiene pessoal.
É um estranho modo de consolar alguém. Dizer a uma pessoa que tem um morto a observá-la não costuma ser entendido como uma estratégia pacificadora. Ao contrário, é o começo de vários filmes de terror. Mas, no âmbito de um velório, convencionou-se que essa ideia tranquiliza.
Pessoalmente, nunca me ocorreria dizer a uma pessoa enlutada que o defunto iria passar a espiar todos os seus movimentos. Sempre admirei, aliás, as pessoas que sabem o que se há-de dizer em ocasiões tristes. Muitas vezes, compareço a velórios e, com medo de repetir o que já foi dito por outros, estabeleço com a viúva um diálogo parecido com este:
— Boa noite. Já lhe disseram "Muita força nesta hora"?
— Já, sim.
— E que talvez tenha sido melhor assim, porque ele não sofreu etc.?
— Também.
— E que não somos nada? Já lhe disseram?
— Ainda não.
— Então era o que gostaria de lhe dizer: não somos nada"¦
— É bem verdade. Muito obrigada.
Essa erudição fúnebre é fruto do exame atento de velórios anteriores, e não de uma vocação íntima. Fui registrando o que as pessoas diziam e agora repito, não inventei nada.
Há clássicos que não uso, no entanto. Por exemplo, nunca disse a ninguém: "Lamento imenso". Parece que eu tive alguma responsabilidade no enfarte e estou a pedir desculpa. Também não digo: "Os meus sentimentos". É uma frase sem verbo. Receio que uma viúva apreciadora de linguística pergunte: "Sim, que têm os seus sentimentos? Esqueceu-se do resto da frase?" A minha avó, que sabia comportar-se em velórios, não quereria que eu fizesse feio. E ela está lá em cima a olhar para mim.