Descrição de chapéu Dias Melhores

Em pleno centro de SP, largo São Bento vira 'pracinha do interior'

Em espreguiçadeiras, moradores de SP dormem e descansam durante o dia

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Ricardo Kotscho
São Paulo

Nem parece que você está em São Paulo. Quem passa pela sempre agitada e perigosa região central da maior cidade do país, com suas ruas estreitas e sempre congestionadas de carros e pedestres, deve até estranhar.

A poucas quadras do marco zero da praça da Sé, no final da rua Boa Vista, surge agora um cenário bucólico que lembra a pracinha do coreto de qualquer cidadezinha do interior.

Em cadeiras dobráveis ou espreguiçadeiras, tem gente dormindo, descansando, comendo ou jogando dominó em mesinhas de ferro, sob a sombra de guarda-sóis azuis.

Foi ali, no venerável largo São Bento, um dos espaços públicos mais antigos de São Paulo, com 420 anos comemorados em agosto, que a prefeitura implantou o projeto pioneiro do bem-sucedido programa Centro Aberto (os outros ficam no largo Paissandu, largo São Francisco e praça General Osório).

Esse programa é um bom exemplo de como o poder público pode humanizar áreas da cidade, sem gastar muitos recursos. Os frequentadores só se queixam que há mais de um ano o anunciado wi-fi não está funcionando.

A primeira pessoa que se apresenta à reportagem é um morador de rua desdentado, conhecido por “General”, que ao ver o fotógrafo abre um sorriso: “Tá vivo, né, major? Parabéns!”.

Com uma bituca de cigarro queimando o canto da boca, ele segue em frente, cumprimentando quem passa à sua frente, como se fosse o mestre de cerimonias do lugar.

São 10h, anunciam os sinos do Mosteiro de São Bento, erguido em 1650, que abriga o maior órgão da cidade, uma belíssima padaria e a biblioteca, com mais de 100 mil títulos, trazidos dois anos antes para o Brasil pelos monges beneditinos.

Aos poucos, os primeiros transeuntes vão chegando e pegando cadeiras no quiosque da prefeitura, acomodando-se sobre o tablado de madeira, em perfeita harmonia, sob os olhares sempre atentos dos PMs do posto policial que nunca fecha.

Alguns abrem um livro, outros iniciam uma conversa que não tem hora para acabar. Tem quem aproveite para tirar um cochilo. Alguns ficam ali sem fazer nada, vendo a vida passar. Só o barulho do trânsito e dos marreteiros apregoando seus produtos na rua São Bento quebra a tranquilidade do lugar.

A esta hora chega também a turma do “Professor”, como é chamado o enxadrista Edson Dias, 79, contabilista aposentado e árbitro da Confederação Brasileira de Xadrez.

Em dois imensos tabuleiros pintados no chão, com peças graúdas, os pupilos de Dias revezam-se nas partidas que duram o dia todo. Jogam por jogar, para passar o tempo, mas o “Professor” já organizou dois torneios neste ano, o último deles em setembro, com 16 participantes.

No quiosque da prefeitura, o funcionário terceirizado Fernando Henrique Souza Cruz, 23, paulistano, tem pouco serviço. Apenas quando alguém vem pegar um jogo de mesa (xadrez, dominó ou damas) ele pede documentos para garantir a devolução.

Cadeiras, cada um escolhe a sua. De um ano para cá, somente quatro das 80 disponíveis foram roubadas. Mas, de vez em quando, o funcionário é obrigado a se levantar para correr atrás de algum descuidado que estava levando alguma embora.

CAFÉ

Com as badaladas do meio-dia, começa o movimento no restaurante do Café Girondino, hoje na esquina de São Bento com Boa Vista. Antigo ponto de encontro de rodas literárias e boemias, foi inaugurado no começo do século 20, quando ficava na praça da Sé.

Fechado em 1919, o café só ressuscitaria no atual endereço em 1998, no local onde funcionou o Grande Hotel D´Oeste. Naquele ano, em que foi comemorado o seu quarto centenário, o largo São Bento passou pela última reforma, com a inauguração da nova estação do metrô, bem ao lado de onde agora está o espaço do Centro Aberto.

Como conhece quase todo mundo que almoça lá diariamente, Ariel Evangelista de Carvalho fica à porta recepcionando a freguesia, e se diverte contando histórias do lugar, que está ganhando fama de casamenteiro.

Confrarias de advogados têm cadeiras cativas. Dois deles já casaram com duas ex-funcionárias e o próprio Ariel conheceu sua mulher no restaurante. Ficou famoso o caso do executivo de um banco italiano que, ao tomar café da manhã, apaixonou-se por uma faxineira e acabou casando com ela.

Conhecido pela boa comida e preços altos (um simples picadinho custa R$ 69,90), o Girondino também oferece refeições de graça para algumas famílias de moradores de rua, que passam o dia todo no Centro Aberto e ali mesmo armam suas barracas, depois das 20h, quando a prefeitura encerra o expediente.

Aos sábados, o espaço funciona até as 16h; domingos e feriados, fica fechado.

MORADORES

São ao todo vinte frequentadores permanentes, entre adultos e crianças, que fizeram daquele espaço público suas moradas. Durante o dia, deixam suas tralhas ao lado do quiosque e circulam pela região para pedir esmolas. Deficiente físico, o baiano José Antonio Oliveira, 48, mora nas ruas de São Paulo desde os 6. Não conheceu os pais, que o abandonaram numa caixa de papelão.

Quando ainda tinha condições físicas, fez bicos como pintor de paredes. Vive na rua com a mulher e uma filha, que está grávida. Para tomar banho, eles vão até o “chá do padre”, como é conhecido o núcleo de convivência mantido pela igreja ao lado da Faculdade de Direito do largo São Francisco.

“Nós só queremos da prefeitura um pedaço de terreno para fazer nossos barracos e terminar de criar os filhos”, pede Oliveira, que nunca se sentiu tão seguro num lugar.

Não é para menos. Bem em frente ao Centro Aberto, fica o posto policial 24 horas, onde quatro PMs passam o dia batendo papo, no maior sossego, como em qualquer praça longe da capital.

“Nosso trabalho é muito sossegado, nunca tem ocorrências. Quase só vem gente aqui para pedir informações”, diz um deles, que pede para não ser identificado porque é proibido de dar entrevistas.

No final da tarde, funcionários do Girondino, como Ariel, também aproveitam para dar uma descansada, antes de retomar o batente, misturando-se aos estudantes a caminho ou na volta das escolas da região.

Por incrível que pareça, tudo isso acontece todos os dias no coração da “cidade que não pode parar”, como já foi chamada em outros tempos. Aqui o tempo parou de repente.

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