Em 'Epidemia Prata', crise de grupo sobressai a tragédia social
Montagem assinala o abismo intransponível entre 'nós' e 'eles'
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Embora "Epidemia Prata" da Cia. Mungunzá seja anunciado como um espetáculo sobre os meninos que se pintam com tinta prateada para pedir dinheiro, a descrição do assunto é imprecisa. O que se destaca mesmo na montagem é a autocrítica sobre os impasses criativos do grupo que atua no centro de São Paulo há cerca de um ano.
O cenário desencantado, com som, vídeo e refletores manipulados em cena e maquinaria à mostra anuncia uma estética que quer colocar em discussão seus procedimentos. As cenas do espetáculo são, em geral, fragmentos autocríticos sobre o que seria uma impostura do grupo de classe média em tentar elaborar artisticamente a miséria e o desamparo das ruas.
Além disso, na maior parte do tempo os atores "representam" a si próprios. Em depoimentos, eles narram uma série de contradições monstruosas vividas no centro. Enfatizam, contudo, não os fatos em si, mas o espanto e a incompreensão diante deles. Embora o espetáculo ressalte o tema da tragédia social, ele é, na verdade, o exame do fracasso em lidar com ela.
Tal perspectiva coloca o próprio grupo no centro de reflexão da peça. Em outras palavras, diante de uma realidade inapreensível em toda sua monstruosidade, o assunto passa a ser a própria impossibilidade daqueles artistas em lidar com o tema. É um tipo de narcisismo às avessas, que exibe orgulhoso certa consciência de sua limitação.
Apesar de flertarem com a lírica urbana das ruas, seja na poesia de imagens concretas que lembra os saraus periféricos ou na métrica recitativa vinda do rap presente em várias canções e poemas, o tempo todo o interesse da montagem parece ser o de assinalar o abismo intransponível entre "nós" e "eles" —e, no fundo, "eles" parecem ser só o veículo para falar de "nós".
De todo modo, a crise se sobrepõe à própria matéria social. Mas é uma roda que gira em falso e, apesar disso, vem sendo o caminho escolhido por boa parte dos melhores grupos teatrais paulistanos.
Ao longo do espetáculo há ainda uma série de referências ao mito da Medusa. O grupo busca associar o mito à conjugação entre miséria e capitalismo que embrutece a sociedade e faz crianças se pintarem com a cor do metal, "pois prata dá mais prata".
Ou seja, uma realidade que petrifica e mecaniza tudo e todos. Mas, ao falar desta medusa social mais interessado nos seus próprios impasses, o grupo antes endossa tal realidade do que a enfrenta.
A sensação é de que não há mais nada a fazer, a não ser compor exercícios híbridos de dança, vídeo e teatro com grande apelo no circuito contemporâneo de artes para representar o caos e a crise. É um tipo de lamento que soa sempre meio cínico.