Descrição de chapéu USP

Dina Dreyfus, a etnóloga que viveu na sombra do ex-marido Lévi-Strauss

Antropóloga contribuiu para a fundação das ciências sociais no Brasil, mas só foi reconhecida na França

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Jorge Henrique Bastos

RESUMO Autor defende a relevância de Dina Dreyfus, que viveu no Brasil nos anos 1930 com seu então marido Claude Lévi-Strauss e foi fundamental para as pesquisas folclóricas do país. Na França, ela ocupou o cargo ministerial mais alto da educação em filosofia e contribuiu para a modernização do ensino da disciplina no país.

 
A antropóloga Dina Dreyfus em 1965 - Reprodução

Ela foi casada com um dos mais eminentes antropólogos do século 20, a quem acompanhou em expedições pelo Centro-Oeste brasileiro e pela Amazônia. Trabalhou lado a lado com um dos maiores escritores e intelectuais do país. Foi pioneira na didática dos estudos etnográficos e uma das maiores forças impulsionadoras das pesquisas folclóricas brasileiras.

Seu trabalho ajudou a pensar o Brasil e determinou o resultado das célebres missões que percorreram o Norte e o Nordeste em 1938. Mas, apesar de sua vida ativa e inspiradora, Dina Lévi-Strauss morreu, em 1999, como Dina Dreyfusseu nome de solteira— e praticamente ignorada pela história.

Dina Dreyfus nasceu em Milão, em 1911, e se mudou para Paris aos 13 anos. Estudou filosofia na Universidade Sorbonne, onde conheceu Claude Lévi-Straussque chegara ao curso depois de passar pela faculdade de direito—, com quem se casou em 1932. 

Três anos depois, o casal se transferiu para o Brasil como parte da missão universitária de estabelecimento da Universidade de São Paulo. O ambicioso projeto de criação da universidade impôs um desafio aos responsáveis, diante da falta de professores de diversas áreas, e a USP cooptou uma plêiade de intelectuais europeus para a função.

As cadeiras de filosofia e ciências humanas foram preenchidas por professores gauleses, como Fernand Braudel, Pierre Monbeig, Jean Maugüé, Pierre Hourcade e Claude Lévi-Strauss, que chegaram ao país em 1935. Dina veio com o marido, mas sem uma colocação específica. 

Ela tentou obter uma subvenção como a do companheiro junto ao Service des Oeuvres Françaises à L'Étranger (serviço das obras francesas no exterior) por meio do diretor Jean Marx —responsável, com Georges Dumas, pelas designações dos docentes no Brasil—, mas não obteve sucesso.

Em São Paulo, os docentes estrangeiros —e Dina participou desse processo— passaram a se inserir no cotidiano da cidade e a fazer suas descobertas. Lévi-Strauss era especialmente solicitado, tanto pela cátedra que conduzia quanto por seu conhecimento da arte e literatura europeias que despontavam naquela década. 

Havia uma chance de que Dina viesse a lecionar no Liceu Franco-Brasileiro, mas isso não se concretizou. E foi nesse momento que uma conjunção benéfica de fatores acabou por promover o encontro da ítalo-francesa com aquele que seria seu mentor e apoiador em diversos projetos determinantes para a etnografia no país: o poeta modernista Mário de Andrade.

PARCERIA

Nessa época, a prefeitura de São Paulo era comandada por Fábio Prado, que, numa decisão arrojada, convida Mário a criar o Departamento de Cultura —órgão que realizaria um trabalho fulgurante quanto às pesquisas folclóricas, etnográficas e de revalorização das nossas tradições culturais.

O autor já viajara ao Nordeste e ao Norte do país entre 1927 e 1928, e seus interesses eram contíguos ao conhecimento detido pelo casal Lévi-Strauss. Era inevitável que seus caminhos se cruzassem, o que ocorre em 1936.

A convite de Mário de Andrade, Dina organizou, entre março e novembro de 1936, o curso de etnografia do recém-criado departamento. Com aulas ministradas à noite, duas vezes por semana, a formação procurava preparar os funcionários municipais para investigações folclóricas, munindo-os de técnicas para pesquisa em campo, manuseio de instrumentos e trabalho museográfico. 

Na primeira parte, lecionavam-se definições e objetivos da antropologia física. Na segunda, explicações sobre folclore. Tais tópicos compõem a publicação "Instruções Práticas para Pesquisas de Antropologia Física e Cultural", escrita por Dina. O material foi essencial na criação das diretrizes dos estudos etnográficos brasileiros, colocando a autora na vanguarda da institucionalização pedagógica do Brasil.

O sucesso da iniciativa motivou Mário de Andrade a conceber a Sociedade de Etnografia e Folclore, a fim de promover pesquisas sobre tradições populares e, posteriormente, o projeto das missões que visavam mapear costumes e tradições do Norte e Nordeste do Brasil. Ele ainda seria responsável pela criação da Secretaria de Folclore, da qual Dina se tornou a primeira dirigente.

Um dos dados mais instigantes da atuação meteórica de Dina na capital foi seu papel na preparação dos pesquisadores que viriam institucionalizar as ciências sociais no meio acadêmico brasileiro —que, naquele momento, dava seus primeiros passos.

Mas Dina, a jovem falante e determinada, queria mais. Ela passou a explorar a cidade e seus arredores, nas famosas "etnografias de domingo", com Lévi-Strauss e Mário de Andrade. Nessas excursões, o grupo chegou a visitar as festas do divino de Mogi e do Bom Jesus de Pirapora.

SUMIÇO

Nesse ponto, podem-se ver elementos esclarecedores sobre o papel coadjuvante que a história reservou a Dina.

No livro "Saudades do Brasil" (Companhia das Letras, 1994), Lévi-Strauss estampa centenas de fotos tiradas em São Paulo, no Centro-Oeste e na Amazônia, sem que haja qualquer menção à então esposa —com quem ele decididamente viajou, pelo menos para Pirapora (MG), já que Dina era orientadora da pesquisa sobre o Bom Jesus, na qualidade de secretária da Sociedade de Etnografia. 

O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss em visita ao Brasil em 1985. - Fernando Santos/Folhapress

Mais: Lévi-Strauss apresenta fotos do seu pai, que visitou o casal na época, mas não vemos nenhuma imagem de Dina. Da mesma forma, na parte sobre os índios nambikwaraatacados por uma oftalmia purulenta—, sentimos novamente a ausência da mulher, já que é sabido que ela mesma foi violentamente contaminada.

Dina não foi mera acompanhante nesse périplo pelo Centro-Oeste: participava com dinamismo, ajudando, discutindo e até mesmo organizando as fichas da "Missão Lévi-Strauss". Na exposição que organizaram a respeito da expedição em Paris, em 1937, o título escolhido foi "Índios do Mato Grosso - Missão Claude e Dina Lévi-Strauss". 

Em seguida, porém, o comedimento excessivo do antropólogo sobre a participação da mulher torna-se explícito, verificando-se uma contumaz falta de referências a ela. No clássico "Tristes Trópicos" (Companhia das Letras), escrito nos anos 1950, Dina é mencionada uma única vez, quando o autor declara que ela abandonou a expedição por causa de uma inflamação ocular. 

É claro que motivos pessoais podem explicar tais omissões: em 1939, o casal se separa e Dina retorna à França. Pouco se sabe sobre o episódio, exceto que viriam a se divorciar em 1945, quando o autor de "Pensamento Selvagem" se casa pela segunda vez.

Viria, ainda, uma terceira esposa, mas não há qualquer registro de que essas mulheres tenham feito contribuição tão decisiva quanto Dina ao trabalho do antropólogo.

Entretanto, o farto material mantido no arquivo do Centro Cultural São Paulo sobre as ações desenvolvidas por ela (ou com seu envolvimento direto) —como a criação da Secretaria de Folclore, a Missão de Pesquisas Folclóricas de Mário de Andrade, prêmio recebido em concurso de monografias, para citar alguns— leva-nos a concluir por certa inação da academia em fazer justiça ao seu desempenho.

No Brasil, encontramos uma exceção no livro "Um Laboratório de Antropologia" (Alameda, 2013), no qual Luísa Valentini trata do trabalho de Mário de Andrade no Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, dando crédito à participação de Lévi-Strauss e também de Dina.

Visão crítica mais incisiva está no livro "Das Verschwinden Dina Lévi-Strauss' und der Transvestismus Mário de Andrades" (o desaparecimento de Dina Lévi-Strauss e o travestismo de Mário de Andrade). Ellen Spielgelmann escreve: "Enquanto a presença de Lévi-Strauss cresce, deve-se constatar que Dina Lévi-Strauss, de certa maneira, se dissolveu no ar".

RETORNO

Fato é que Dina não se abalou com a separação do marido e o abandono de toda a sua vivência no Brasil: de volta à França, em 1939, retomou o ensino e passou a assinar Dina Dreyfus, seu nome de solteira, com o qual galgou carreira respeitável em seu país natal. 

A Europa encontrava-se assolada pelo fascismo, à beira da Segunda Guerra. Não surpreende que Dina —que já tinha enfrentado expedições entre índios da Amazônia, atravessando milhares de quilômetros sob condições precaríssimas— tenha participado ativamente nas redes de resistência de Montpellier durante a ocupação nazista, ao mesmo tempo em que ensinava sob a identidade falsa de Denise Roche.

Após o fim da guerra, a etnóloga aprofundou sua área de interesse, adensando reflexões sobre o ensino da filosofia e a filosofia do ensino —campo em que se tornaria novamente precursora, dedicando-se à modernização da disciplina. Numa iniciativa para integração de outras mídias como dispositivos pedagógicos, ela inaugurou as primeiras emissões rádio-televisivas escolares em filosofia em 1964, com colaboração de Alain Badiou.

Em um desses programas, "Filosofia e Verdade", de 1965, disponível no YouTube, Dina participa de uma conversa com Jean Hyppolite, Georges Canguilhem, Michel Foucault e Paul Ricoeur. É a única mulher em cena, mas conduz a discussão com segurança e sagacidade.

Alguns anos mais tarde, Dina seria a primeira mulher a ser nomeada ao cargo de "Inspetor Geral da Filosofia" do Ministério da Educação francês, tendo sempre rejeitado o uso da versão feminina do nome de sua função. 

As conquistas de Dina são inegáveis e especialmente admiráveis por terem ocorrido numa época de quase monopólio masculino na academia e em posições de poder. Tudo isso aponta para a excepcionalidade de seu caráter —que, infelizmente, segue coberto por um véu de silêncio, especialmente no Brasil. É necessário que se reverta o quadro de reconhecimento modesto ou inexistente sobre suas contribuições para o estudo e valorização da cultura brasileira. 

Espera-se que o tempo permita o reconhecimento de sua importância, consagrando Dina Dreyfus como um personagem muito maior do que "a primeira mulher de Lévi-Strauss". 


Jorge Henrique Bastos, 52, é jornalista e tradutor. Publicou "Poesia Contemporânea Brasileira - Dos Modernistas à Atualidade" (Antígona).

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