Autora de 'O Conto da Aia' dá nova cara a peça de Shakespeare; leia trecho

Margaret Atwood relê 'A Tempestade' no livro 'Semente de Bruxa', parte de projeto sobre versões do bardo

Conteúdo restrito a assinantes e cadastrados Você atingiu o limite de
por mês.

Tenha acesso ilimitado: Assine ou Já é assinante? Faça login

Margaret Atwood tradução Heci Regina Candiani

[SOBRE O TEXTO] O trecho nesta página está no romance “Semente de Bruxa”, que faz parte do projeto britânico Hogarth Shakespeare, que convida autores contemporâneos para fazer releituras do bardo. O volume escrito por Atwood, inspirado na peça “A Tempestade”, será lançado no Brasil pela editora Morro Branco em outubro.

Ilustração para Imaginação de Margaret Atwood - Marcos Garuti

I. Passado sombrio  
1. Praia 

Segunda-feira, 7 de janeiro de 2013. 

Felix escova os dentes. Depois, escova seus outros dentes, os falsos, e os desliza para dentro da boca. Mas eles não se encaixam bem, apesar da camada de adesivo rosa que ele aplicou; talvez sua boca esteja encolhendo. Ele sorri: a ilusão de um sorriso. Fingimento, falsidade, mas quem vai saber?

Em outros tempos, ele teria telefonado ao dentista; marcado uma consulta, e se sentaria na luxuosa poltrona de imitação de couro, diante do rosto preocupado cheirando a enxaguante bucal, e das mãos habilidosas empunhando instrumentos reluzentes. “Ah, sim, entendi qual é o problema. Não se preocupe, vamos arrumar isso para você”. Era como levar o carro para a regulagem. E ele ainda poderia ser agraciado com música nos fones de ouvido e um comprimido de semi-nocaute. 

Mas, nesse momento, ele não pode pagar por um ajuste profissional desse tipo. O plano odontológico dele é mixuruca, por isso está à mercê de seus dentes pouco confiáveis. Tanto pior. É tudo que ele precisa para sua última apresentação, que se aproxima: cair a dentadura. “Agora nossa fechta acabou. Osh nossos atorish”... Se isso acontecesse, sua humilhação seria completa; ao pensar nisso, fica vermelho até os pulmões. Se as palavras não forem perfeitas, a intensidade exata, a entonação delicadamente ajustada, o feitiço falha. As pessoas começam a se mover nas poltronas, tossem, e vão para casa no intervalo. É a morte. 

— Muá-mué-mui-muó-muu —, ele diz para o espelho cheio de manchas de pasta de dente que fica acima da pia da cozinha. Abaixa as sobrancelhas e projeta o queixo. Então, força um sorriso: o sorriso forçado de um chimpanzé encurralado, que em parte é de raiva, em parte, de ameaça e, em parte, de desalento. 

Como ele decaiu. Como desanimou. Como se diminuiu. Improvisando essa frase vazia, morando em um pardieiro, ignorado em um fim de mundo; enquanto Tony, aquele bostinha que vive se autopromovendo, se exibindo, perambula por aí com os ricos e entorna champanhe, devora caviar, línguas de cotovia e leitões, frequenta festas de gala e se deleita com a adoração de seu séquito, de seus lacaios, de seus bajuladores... 

Que outrora foram os bajuladores de Felix. 

Isso dilacera. Envenena. Fermenta a vingança. Quem dera... 

Chega. “Ombros retos”, ele ordena ao seu reflexo cinzento. “Segura a onda.” Ele sabe, sem olhar, que está ganhando uma pancinha. Talvez devesse arranjar uma cinta. 

Esquece! Isso aperta a barriga! Há trabalho a ser feito, tramas a serem tramadas, fraudes a serem fraudadas, vilões a serem enganados! “Três tigres tristes para três pratos de trigo. Ela perambula pela beira da praia procurando pequenas madrepérolas preciosas.”

Aí. Nem uma sílaba errada. 

Ele ainda é capaz de fazer aquilo. Vai conseguir, apesar de todos os obstáculos. Logo no início, vai enfeitiçar a todos de tal modo que lhe darão até as próprias calças, não que ele vá apreciar a visão resultante. Vai deixá-los maravilhados, como diz a seus atores. “Vamos fazer a mágica!”. 

E enfiá-la goela abaixo naquele bastardo ardiloso e perverso, o Tony. 


Margaret Atwood, escritora canadense, é autora de “O Conto da Aia” e “Alias Grace”.

Heci Regina Candiani, doutoranda em estudos de gênero, é jornalista, cientista social e tradutora.

Marcos Garuti é artista visual.

Relacionadas