É
impossível comparar escolas públicas e privadas
sem levar em conta uma série de fatores sociais
Um punhado de alunos, pais e professores na cidade de São
Paulo entrou, no final de 2004, numa batalha que, naquele
momento, parecia perdida: salvar a sua escola pública,
a Martim Francisco, cujo prédio tinha sido vendido
para uma construtora. Aprovada pela Câmara Municipal
às vésperas do recesso parlamentar, a venda
teve a participação do governo estadual e da
prefeitura.
A qualquer momento, o terreno seria ocupado, e a escola, derrubada
e transformada em cinzas para que fossem erguidos luxuosos
edifícios. Para piorar, o país estava em clima
de final de ano, com as pessoas absorvidas pelo Natal ou pelas
férias.
Mas o frágil grupo fez daquele prédio uma espécie
de quartel-general, como se estivesse mesmo em guerra, e saiu
buscando aliados por todos os lados. Chamaram a atenção
das autoridades. A briga acabou na Justiça e chegou
até Brasília. Aconteceu o que parecia impossível:
o projeto milionário foi desfeito.
Na semana passada, o esforço de guerra estava recompensado.
Localizada no bairro da Vila Nova Conceição,
ao lado do parque Ibirapuera (daí se entende o apetite
da construtora), a Martim Francisco apareceu na lista do Enem
entre as melhores escolas estaduais da cidade, ficando no
14º lugar do ranking. Está longe do topo do ranking,
mas é o suficiente para que ela fique à frente
de uma série de escolas particulares.
Essa história de resistência ajuda a entender
o resultado obtido no Enem 2007, divulgado na quinta-feira
passada.
Olhando um detalhe da mais recente pesquisa Datafolha sobre
as principais preocupações dos brasileiros,
encontramos o início do círculo vicioso da ignorância.
As três principais preocupações são,
pela ordem, saúde, desemprego e violência. Quando
levamos em conta a escolaridade e a renda do entrevistado,
essa ordem muda. Para os mais ricos e com ensino superior,
a educação está em segundo lugar (19%),
depois da saúde (24%). Em terceiro, ficaria a violência
(13%) e, em quarto, com muita distância, o desemprego
(9%).
Para os mais pobres e com menos escolaridade, a educação
é um problema menor; aliás, quase não
é um problema. Apenas 3% dos brasileiros com ensino
fundamental apontariam a educação como o mais
importante problema nacional.
A tradução desses números é a
seguinte: o rico, que coloca o filho na escola particular,
está muito mais preocupado com a educação
do que o pobre, que matricula o filho numa escola pública.
Não é à toa que o governo tem de quase
subornar as famílias mais carentes para que deixem
seu filho estudando.
Se os pobres pensassem como os ricos e soubessem enxergar
melhor a relação entre prosperidade individual
e qualidade de ensino, a lista do Enem geraria uma gritaria
em todo o país.
As direções das escolas particulares aguardam
com extrema ansiedade os resultados do Enem pelo simples motivo
de que a posição no ranking significa dinheiro.
Os pais avaliam se a mensalidade está valendo a pena,
comparando as notas com as mensalidades, muitas das quais,
nas escolas de elite, ultrapassam R$ 2.000 -mais de dez vezes
o custo mensal de manter um estudante em uma escola pública.
Os proprietários dos estabelecimentos terão
de explicar a relação custo-benefício
entre a nota e o valor da mensalidade. Se as explicações
não forem convincentes, perdem alunos e são
vítimas do marketing viral do boca-a-boca.
As instituições que estão no topo do
ranking beneficiam-se do círculo virtuoso em que, por
serem boas, atraem as famílias mais preocupadas com
a formação de seus filhos e, como atraem os
melhores alunos, apresentam os melhores resultados.
Quando há problemas, convocam-se professores particulares,
psicólogos e psicopedagogos. Por isso as escolas técnicas
ou militares, embora públicas, conseguem se destacar.
É simplesmente inimaginável que, numa escola
particular, os professores faltem cronicamente, algo tolerado
pelas famílias que têm seus filhos na escola
pública e justificado pelos sindicatos.
Não me canso de repetir que uma imensa porcentagem
de alunos não aprende porque não recebe os mais
elementares cuidados de saúde física e mental,
além de terem poucos estímulos culturais. Na
semana passada, um estudo da Fundação Getúlio
Vargas mostrou que crianças e jovens que vivem em casas
com saneamento básico ruim têm mais problemas
escolares porque tendem a ficar mais doentes.
É impossível fazer uma comparação
entre escolas públicas e privadas sem levar em conta
uma série de fatores sociais, a começar da atenção
familiar -o ambiente de casa é a primeira sala de aula.
PS - A escola Prof. Antonio Alves Cruz estava ameaçada
de fechar as portas por falta de alunos e debandada de professores.
Aquela crise motivou pais, alunos e ex-alunos, que criaram
um movimento chamado Fênix, numa referência à
ave mitológica que renasceu das cinzas. Na lista do
Enem, o colégio ficou em 11º lugar entre as melhores
escolas estaduais da cidade de São Paulo. Coloquei
neste
link mais casos bem-sucedidos da relação
da escola com a comunidade.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S.Paulo, editoria
Cotidiano.
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