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REFLEXÃO


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urbanidade
27/07/2005
O motoboy de Deus

Euclides Ferreira da Silva gostava de beber, usar drogas e andar de motocicleta em alta velocidade -tudo ao mesmo tempo. Freqüentemente, misturava os três prazeres e os conduzia na velocidade de 140 km/h, ziguezagueando entre os automóveis. "Percebi que, mais cedo ou mais tarde, iria me arrebentar." Suspeitava que, lá no fundo, talvez quisesse mesmo se arrebentar. "Minha vida era vazia, nada tinha sentido, precisava encher minha cabeça com o perigo para ter emoção."

Nem precisa misturar moto com drogas e bebida. Estimativas oficiais indicam que, a cada 30 horas, um motoboy morre na cidade de São Paulo. Nessa tribo de vulneráveis de 150 mil integrantes, cujo dia é comemorado hoje -o dia do motociclista-, ele decidiu percorrer um caminho diferente. Foi buscar na religião uma explicação para o fato de, apesar de ter se exposto tanto e por tanto tempo, ter sobrevivido. "Mudei", orgulha-se. Começou a estudar a Bíblia, noivou, casou, teve uma filha, batizada de Sara -a mulher de Abraão, que, apesar de muito velha, engravidou. Prestou vestibular e entrou numa faculdade de teologia.

Neste dia do motociclista, sem festas, pelo menos ele se sente em condições de comemorar suas conquistas. Dos velhos tempos, só manteve a moto, na qual a Bíblia passou a acompanhá-lo quase como um capacete. "Quis ir a fundo nos estudos, assim como ia a fundo quando estava em alta velocidade, com a cabeça tomada pelo álcool e pela droga."

Era uma fé solitária e silenciosa. Até que, certo dia, viu um colega, ensangüentado e gemendo, estirado na rodovia Raposo Tavares. "Pensei que poderia ter sido comigo." Ao chegar à empresa, sentiu vontade de ler um trecho da Bíblia e interpretá-lo para seus colegas. "Muitos acharam bobagem." Manteve, porém, o ritual pelo menos uma vez por dia. "Tinha de ser rápido, estávamos sempre correndo." Com o tempo, ganhou uma audiência fiel. Os trechos bíblicos deveriam se relacionar com questões de valorização da vida. "Apesar daquela correria danada, muitos começaram a prestar atenção."

Na mais visível e barulhenta das tribos paulistanas, Euclides inaugurou uma nova modalidade na paisagem paulistana -o motoboy-pregador.

Leia especial sobre dia do motociclista

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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