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REFLEXÃO

Os programas de renda apresentados pelo governo são suficientes para atenuar os atuais índices de pobreza?
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Políticas Públicas
26 /10/2003

Vamos virar um país de mendigos oficiais?

Lancei a pergunta que está no título desta coluna para a coordenadora do programa Bolsa-Família, Ana Fonseca, responsável pela distribuição, no próximo ano, dos anunciados (embora ainda não assegurados) R$ 5,3 bilhões aos pobres. Corremos o risco de viciar famílias em recursos públicos? "É uma questão atordoante", reconheceu.

Para ela, esses recursos são uma porta de entrada para alguma inclusão dos mais pobres. "Vamos ter de abrir as portas de saída." Ou seja, as bolsas não são planos de aposentadoria nem esmola, mas mecanismos passageiros para que os indivíduos habilitem-se a ganhar a vida sem ajuda oficial.

Ana Fonseca comentou que, sem crescimento econômico, gerando salários e empregos, não há plano de distribuição de recursos que funcione. "As bolsas virariam um saco sem fundo."

Um dos maiores especialistas em programas de renda mínima, o economista Márcio Pochmann, secretário municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade em São Paulo, acha que nem mesmo o crescimento econômico evitaria um nível do que ele chama de "dependentismo". O que, traduzindo, seria a mendicância com dinheiro público - ou seja, a "bolsa-esmola".

Impossível deixar de considerar que a bolsa-família, anunciada pelo presidente Lula na semana passada, é um avanço de tecnologia social.

Não se sabe ainda como será a gerência do Bolsa-Família, quantos governadores e prefeitos vão aderir ao programa nem qual o montante de recursos disponíveis. Até agora, o que vemos é somente o desenho do programa.

Mas o desenho revela uma preocupação de evitar dispersão dos recursos, buscando foco. Mais: estabeleceu-se como meta integrar o Bolsa-Família aos projetos similares estaduais e municipais. O que é difícil, como admitiu Lula na última quinta-feira, pela vaidade de governadores e prefeitos. Esse tipo de "vaidade", diga-se, fez com que se lançasse com forte apelo de marketing o Fome Zero.

Justamente o medo da "bolsa-esmola", aquele dinheiro que se presta a perpetuar a dependência, faz com que se exijam contrapartidas. Aposta-se na idéia, sensata, de que, se a família atentar para a saúde e a educação dos filhos, haverá, no futuro, mais trabalhadores. "Não é, infelizmente, tão simples", diz Márcio Pochmann, com o que concorda Ana Fonseca.

Existem segmentos marginalizados há tanto tempo, gerações que vivem na exclusão, que as bolsas, mesmo com todas as contrapartidas, não criaram cidadãos autônomos.

Nem mesmo os países ricos - a começar pelos Estados Unidos- conseguem escapar dos mendigos oficiais. Imagine uma nação com tantos séculos de exclusão e baixo índice de escolaridade.

Nem é necessário ir para o Nordeste para ver a miséria geracional. Na cidade de São Paulo, há centenas de milhares de miseráveis que não têm renda, vivem de favor, trocam trabalho por um prato de comida ou por um quarto. "A renda mínima foi pensada para complementar a renda, não para ser a renda", diz Pochmann.

O nó social está no fato de que o mercado de trabalho está cada vez mais exigente, e a educação pública de qualidade é escassa. Vemos em todo o país gente com diploma universitário disputando cargos que, a rigor, não exigiriam nem mesmo o ensino fundamental -vagas, por exemplo, para garis. Descobriu-se até uma tendência de executivos diminuindo o próprio currículo na procura por um emprego, temendo serem considerados "qualificados demais" para o posto.

Na semana em que se lançou o Bolsa-Família, novos recordes de desemprego foram apresentados - isso num mês que, tradicionalmente, tende a ser melhor devido à proximidade das festas de final de ano. A imensa maioria dos novos empregos criados é informal, o que faz baixar a renda do trabalhador e reforça relatório do Banco Mundial, divulgado na sexta, informando mais uma vez o fato de que somos o campeão em desigualdade na América Latina. "Além do crescimento, as bolsas dependem da melhoria dos indicadores de saúde e educação", analisa Ana Fonseca.

A miséria, como se sabe, se auto-reproduz; filhos de pobres tendem a ser pobres.

Como se não bastassem todas essas dificuldades, imensas, prefeitos, governadores e presidente não conseguem se entender para coordenar suas ações sociais.

É porque a política, no Brasil, depende da pobreza assim como os pobres dependem da esmola -preferem mendigos a cidadãos.

PS - Mais um indicativo sobre os efeitos da crise. Será divulgado nesta semana estudo sobre a classe média da região metropolitana de São Paulo, feita pela secretaria municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade. De 1992 até 2000, a classe média diminuiu em quase 17%; o número de pessoas mais ricas aumentou 11%; e o dos mais pobres subiu 42%. O fato é que, hoje, não existe nenhum grupo político que represente essa classe média, que não tem direito a nenhum tipo de bolsa, mas já não matricula os filhos numa escola privada.

   
 
 
 

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