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Faz dez anos que o desemprego cresce, a renda do trabalhador
cai e o mercado informal, em que não há direitos
trabalhistas, prospera impunemente.
Na sexta-feira, estatísticas oficiais reforçaram
o quadro de más notícias: o desemprego bateu
recorde para um mês de janeiro e a produção
no primeiro ano de mandato do primeiro presidente operário
sofreu contração -só não foi pior,
mesmo assim por pouco, do que
em 1992, quando o país estava metido numa crise institucional
com o impeachment de Fernando Collor.
Por que com tantas más notícias
por tanto tempo o Brasil não explode, com revoltas
de rua e paralisações? Afinal, duas décadas
atrás, os civis recuperaram o poder, prometendo mais
empregos e mais salários, e o que se vê, nas
regiões metropolitanas, é a multiplicação
dos marginais e dos marginalizados.
Um dos fatores dessa razoável
calmaria política, jamais reconhecido por Lula, pelo
PT e pela maioria dos formadores de opinião -seja por
ignorância, seja por manipulação-, é
o seguinte: nunca se distribuiu tanto dinheiro para os pobres.
Ainda não nos demos conta da extensão desse
anestésico social e de seus efeitos políticos.
Desde a década de 90, disseminaram-se
programas de transferência de renda, motivados pela
nova Constituição. Não é exagero
afirmar que ninguém, nem mesmo o mais gabaritado técnico,
sabe informar quantas pessoas são beneficiárias
desses recursos federais, estaduais e municipais, sem contar
os projetos que envolvem o chamado terceiro setor.
Há relatórios oficiais
que afirmam que, apenas no plano federal, são distribuídos
48 milhões de benefícios das mais variadas formas,
alguns dos quais a partir de R$ 7. Exagero?
Só a aposentadoria rural chega
a quase 6,8 milhões de pessoas, ajudando a manter famílias
no campo; 824 mil idosos e portadores de deficiência
ganham um salário mínimo mensal; 700 mil crianças
ganham uma renda para não trabalharem; 3,6 milhões
de brasileiros recebem a bolsa-família, o que atinge
pelo menos 11 milhões de pessoas.
Isso sem contar os remanescentes de outros programas (Bolsa-Escola,
Vale-Gás, Cartão-Alimentação e
Bolsa-Alimentação) ainda não incorporados
ao Bolsa-Família. E não é só.
São encontrados programas de
transferência de renda, com verbas estaduais e municipais,
em Goiás, no Distrito Federal, no Rio de Janeiro, no
Rio Grande do Sul, em Minas Gerais, em Mato Grosso do Sul,
no Acre, no Amazonas, em Roraima, no Amapá e no Pará.
No caso de São Paulo, existem, além de recursos
estaduais, programas de cidades importantes, como Santo André,
Campinas e Ribeirão Preto. Somente no município
de São Paulo há 300 mil famílias atendidas.
Técnicos do Banco Mundial e
do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) comentam
que tanta gente atendida compõe, nesse caótico
desenho, um dos maiores programas de transferência de
renda, via governo, do mundo.
O que Lula não sabe, não
quer saber, ou sabe e finge que não sabe é que
talvez ele ajude mesmo a fazer "um dos maiores programas
sociais da Terra", como disse em mais um de seus improvisos,
na quinta-feira. E isso é verdade não só
por causa da sua atuação mas devido a essa profusão
de projetos da década de 90.
Além dos vários programas
de renda mínima, pelo menos mais um fator engordou
o colchão social brasileiro: a merenda escolar, um
benefício que também pode ser traduzido como
transferência de renda.
As décadas de 80 e 90 aceleraram
a universalização do ensino fundamental, o que
pode não ter significado a melhoria da qualidade da
educação, mas significou dezenas de milhões
de crianças e adolescentes comendo na escola.
Em vários municípios,
apesar de lentamente, aumenta o número de crianças
na pré-escola e nas creches. Em outras palavras, mais
comida para a família.
O problema hoje é menos o número
de pessoas a serem atingidas -o que dá manchete- e
mais a forma de gerenciar melhor os recursos que já
são distribuídos. Estão em questão
os meios de ajustar o foco dos investimentos, de avaliar o
impacto desses benefícios e de abrir portas de saída
para que não se institucionalize a mendicância.
A verdade é que a gestão
dos programas em si, sempre intrincada, complexa e de pouca
visibilidade, não chama a atenção dos
eleitores -nem, vamos reconhecer, da imprensa.
Bolsas são apenas e tão-somente
um anestésico, cujo efeito se dilui se não há
crescimento econômico.
Mas até quando vai durar esse
anestésico? Não faço a menor idéia
-aliás, ninguém faz idéia. Só
sei que não é para sempre. Se a renda continuar
caindo, o desemprego aumentando e o mercado de trabalho se
informalizando, Lula não vai acabar seu mandato tranqüilamente.
É compreensível que
ele tenha prometido, nesta semana, mais 800 mil bolsas-famílias
nas regiões metropolitanas, onde se combinam muitos
votos e poucos empregos.
PS - Por falar em avanços
na educação, o Rio de Janeiro é a cidade
que está na vanguarda educacional no que se refere
à pré-escola. A seguir o ritmo de matrículas,
o Rio de Janeiro será, no próximo ano, a primeira
grande cidade do país a universalizar a pré-escola.
É viável: a taxa de matrícula já
está em 75% da população de quatro a
seis anos. Quanto mais for gasto hoje em educação
infantil, menos será gasto, no futuro, em bolsas. Educação
infantil é, disparado, o melhor investimento contra
a mendicância institucional.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S. Paulo, na editoria
Cotidiano.
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