Até
o gás carbônico virou mercadoria, resmungariam
os críticos do sistema capitalista. É o que
parece. Só que neste caso o propósito é
nobre. Com a entrada em vigor do Protocolo de Quioto, passou
a operar com mais força o mercado de créditos
de carbono. Na verdade, ele já opera (extra-oficialmente)
em todo o mundo e foi criado para ajudar os países
industrializados a reduzirem suas emissões de gases
na atmosfera: até 2012, os índices devem diminuir
5,2% em relação aos registros do ano de 1990,
conforme estipula o Protocolo.
Como ficaria muito caro para as nações que mais
poluem investir em projetos de redução das emissões
em tão pouco tempo, o acordo permite que elas comprem
créditos de carbono das menos poluidoras. Créditos
de carbono são certificados emitidos por agências
de proteção ambiental para os projetos das empresas
que reduzem drasticamente as emissões incluindo desde
reflorestamentos até a substituição dos
combustíveis fósseis por energias limpas como
o biodiesel. Estes papéis, calculados pelas toneladas
de gases que deixarão de ser lançadas na atmosfera,
são comercializados nas bolsas de valores e de mercadorias.
Segundo os especialistas, este sistema é possível
porque o efeito negativo das emissões é global.
Assim, a comercialização de créditos
pode ocorrer entre empresas do mesmo país ou de países
diferentes.
O Protocolo de Quioto só se tornou possível
no dia 4 de novembro de 2004, com sua ratificação
por Vladimir Putin, presidente da Rússia. Para entrar
em vigor, ele precisava das assinaturas dos países
que , somados, detinham um mínimo de 55% das emissões
em 1990. Só a Rússia foi responsável
por 17% das emissões nesse ano. Vale salientar que
o maior responsável pelas emissões (36%), os
Estados Unidos, não assinou o documento. A Austrália
também preferiu ficar de fora.
Vilões: dióxido de carbono, o metano
e o óxido nitroso
Os gases que estão na mira do Protocolo de
Quioto são o dióxido de carbono, o metano e
o óxido nitroso. Na verdade, a presença destes
gases na atmosfera tem importância: eles formam uma
espécie de cobertor que mantém a temperatura
global, sem o que a terra seria 30ºC mais fria. O problema
é que, com o aumento da poluição, iniciado
no século 19, com a Revolução Industrial,
este cobertor está sendo engrossado, causando o aquecimento
global. Segundo pesquisas do Intergovernmental Panel on Climate
Change (IPCC) – grupo de estudos criado em 1988 pela
Organização Meteorológica Mundial (OMM)
e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente (PNUMA) para avaliar a informação científica,
técnica e socioeconômica disponível sobre
mudança do clima –, a temperatura global pode
subir entre 1º e 3,5ºC nos próximos 100 anos,
caso o aquecimento global não seja freado. Isso causaria
o derretimento de parte das calotas polares e, conseqüentemente,
um aumento de 50 cm no volume dos oceanos, resultando no desaparecimento
de ilhas e cidades litorâneas.
Brasil no mercado de créditos de carbono
O Brasil já está no mercado de créditos
de carbono. Sua entrada ocorreu em junho do ano passado, após
a aprovação de dois projetos que fazem parte
do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) do Protocolo de
Quioto – o Projeto Vega, de Salvador (BA), e Nova Gerar,
de Nova Iguaçu, Baixada Fluminense (RJ). O princípio
de ambos é o mesmo: [gerar energia elétrica
a partir do biogás produzido em aterros sanitários.
O aterro de Nova Iguaçu foi criado pela empresa Nova
Gerar, uma joint venture entre a inglesa EcoSecurities e a
SA Paulista, operadora do aterro. O representante da EcoSecurities
no Brasil e um dos sócios, o brasileiro Nuno Cunha
e Silva, explica como funciona o aterro de Nova Iguaçu,
que tem 550 mil metros quadrados e em média recebe
1.500 toneladas de lixo por dia.
Lá, o metano e o dióxido de carbono produzidos
pelas bactérias que estão no lixo em decomposição
são canalizados e queimados, gerando eletricidade.
Na queima, estes gases se transformam em gás carbônico.
O maior benefício do processo é o fato de o
metano e o dióxido de carbono acumularem muito mais
calor do que o gás carbônico – só
o metano é 23 vezes mais quente do que CO2. O gás
resultante é aproveitado como combustível na
caldeira que processa o chorume, líquido tóxico
proveniente da decomposição do lixo. Segundo
Nuno, em 20 anos o aterro de Nova Iguaçu deve deixar
de lançar na atmosfera cerca de 10 milhões de
toneladas de gases. Como uma tonelada de gás carbônico
está cotada entre dois e sete dólares, a empresa
pode lucrar mais de 20 milhões de dólares nesses
20 anos no mercado de créditos de carbono.
“As estimativas dos investidores é que em 2005
o mercado de créditos de carbono movimente de cinco
a sete bilhões de dólares em todo o mundo”,
explica Nuno, que prevê, com ressalvas, um bom futuro
para o Brasil neste negócio. “A China é
hoje o país com maior potencial para investir em projetos
de redução dos gases, com a Índia em
segundo lugar. O Brasil viria em terceiro. Espero, no entanto,
que a burocracia brasileira não assuste os investidores.”
Outro fator que pode prejudicar o Brasil é a falta
de credibilidade do mercado brasileiro no exterior. É
o que explica a economista Amyra El Khalili, fundadora da
Bolsa Brasileira de Commodities Ambientais (BECE na sigla
em inglês para Brazilian Environment Commodities Exchange).
“No caso do Brasil, como também no da África,
é exigida uma série de certificações
e avais em função dos riscos de crédito,
por todas as questões de credibilidade: o chamado risco
Brasil. Isso ocorre porque no mercado internacional o Brasil
não é considerado um bom pagador”, diz
Amyra.
A brasileira com cidadania palestino-jordaniana é
profunda conhecedora do mercado de commodities ambientais.
Formada em economia, ela trabalhou durante 20 anos no mercado
de futuros e de capitais, negociando toneladas de ouro e de
commodities agropecuárias. Nesse período, desenvolveu
quatro corretoras de commodities e derivativos e treinou cerca
de 1.600 operadores de mesa, pregão e liquidação,
além de clientes e usuários do sistema financeiro.
Em 1996, deixou o mercado para se dedicar com exclusividade
ao Projeto Consultants, Traders and Advisors, Geradores de
Negócios Socioambientais nos Mercados de Commodities
(CTA), que havia criado em 1990. Trata-se de uma organização
cujo objetivo é formar especialistas para o mercado
com uma visão diferente da predominante: a de que os
instrumentos financeiros devem ser usados para servir à
sociedade em vez de só atenderem aos interesses das
grandes corporações.
Para o mercado de créditos de carbono, a mesma Amyra
idealiza: “Não sou contra os mercados, mas acredito
que todo instrumento econômico pode ser usado para o
bem ou para o mal (especulação). Existe o risco
de os certificados de carbono serem transformadas apenas em
uma operação financeira para dar lucro aos seus
investidores e acabarem não gerando nenhuma vantagem
para o meio ambiente. Defendo a construção de
um novo mercado que traga investimentos diretos para as populações
carentes e excluídas da pirâmide do mercado financeiro.
Na estrutura hoje vigente, o indivíduo desempregado
ou sem renda fica totalmente fora desse mercado, não
tem acesso à água potável, à eletricidade,
ao tratamento do esgoto, ou seja, aos bens que compõem
as matrizes ambientais”, critica.
Já para Sebastião Renato Valverde, doutor em
economia florestal e coordenador do Departamento de Engenharia
Florestal da Universidade de Viçosa, em Minas Gerais,
o mercado de créditos de carbono pode ser uma excelente
arma na conservação ambiental. Segundo o professor,
dentro da lógica capitalista esse novo mecanismo passa
a valorizar como nunca os recursos naturais. “Só
assim as pessoas poderão dar real valor à natureza.
As florestas, por exemplo, absorvem CO2 e água e produzem
oxigênio, um produto que a gente não paga para
usar. No entanto, para o agricultor, a floresta não
dá lucro, ou seja, não tem valor. Então,
o melhor para ele é derrubar as árvores. Com
o mercado, esse agricultor vai ser estimulado a proteger a
floresta, porque vai lucrar com a venda dos créditos
de carbono”, defende.
Segundo Valverde, o Brasil tem muito a ganhar com esse novo
mercado. “É uma oportunidade tremenda para o
nosso país, porque temos muitas terras para serem reflorestadas.
O que sempre faltou por aqui foi capital. Com o mercado de
créditos de carbono, os outros países vão
poder financiar os nossos projetos de preservação.
Vai ser bom para eles, para nós e para o meio ambiente.”
DANIELLE CHEVRAND
da fundação Banco do Brasil
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