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sp que poucos vêem
26/11/2004
Histórias de quem refaz o Tietê

Quem passa de carro nas Marginais vê só as cabecinhas, protegidas por capacetes. Ao longo de 24,5 quilômetros, do Cebolão à Barragem da Penha, lá estão eles - José Milton, Jesus, Mick Jagger, 2.500 ao todo, os trabalhadores da obra que está mudando o Rio Tietê. Equilibram-se no barranco, detonam rochas, manejam as escavadeiras que já retiraram 9 milhões de metros cúbicos de material da calha, enchem os caminhões de entulho. À noite, as barcaças continuam a dragar o rio e ainda há homens lá.

Com esse horário de verão, está um breu quando eles saem de casa para o batente. Pegam trem, ônibus - às vezes mais de um - e, com o dia amanhecendo, descem as escadas que levam às frentes de trabalho, em quatro lotes. Trocam de roupa, tomam café no refeitório e vão para o TDS - treinamento de segurança no trabalho. Capacete, botas e protetores de ouvido são obrigatórios.

Já para o fedor do rio não tem jeito, a não ser se acostumar. E eles se acostumam logo. Em poucos dias já nem sentem o cheiro, insuportável para o visitante. "Só lembro como esse rio fede quando passo de ônibus na Marginal. Aqui de dentro não", conta o marinheiro José Milton de Lima, de 44 anos, pernambucano de São Bento do Una de onde veio pequeno e para onde nunca mais voltou. Ele passa o dia no rio e lembra que no começo sentia dor de cabeça, dificuldade para respirar, garganta seca. Com duas semanas, estava anestesiado. Claro que se fica um mês sem chover, o bicho pega. A água fermenta de borbulhar. "Dizem que é gás metano", arrisca José Milton. "Mas bastam dois ou três dias de chuva para a água ficar limpinha." Limpinha quer dizer menos lodosa, que é seu estado normal. Reparando bem, a água do Rio Pinheiros é preta; a do Tietê, marrom. Ambas, nojentas. De lá já foram retiradas 11 mil toneladas de lixo e 120 mil pneus.

Da enxada para a enxada
E é nesse ambiente que o pernambucano Joseildo Silvio de Lima, de 22 anos, trabalha sem traumas. Oito horas com o corpo inclinado na beira do rio preparando taludes - a proteção das margens, 19 quilômetros de barrancos que estão recebendo muros de contenção de concreto. Em Serra Talhada, ele plantava milho, feijão e mandioca. Aqui, faz o ajuste fino na terra que a máquina deixa irregular. "Saí da enxada e vim para a enxada. É minha sina."

Mas acha que está no lucro: lá não tinha salário; aqui, ganha R$ 545,00. Paga R$ 150,00 de aluguel do quarto de pensão, na Estação da Luz, onde vive com a mulher, Iolanda, e a filha, Sara Evelyn, de 3 anos. Sabe-se lá como, ainda guarda um pouquinho. "Estou fazendo uma poupança."

Dos nove irmãos de Joseildo, dois trabalham na obra que está aprofundando a calha do Tietê em 2,5 metros em média e alargando o rio para aumentar a vazão da água e reduzir as enchentes nas Marginais e na cidade. Primeiro veio Ciço, que foi arranjando colocação para os outros. São vizinhos na pensão da Luz que, aliás, é quase toda alugada a pernambucanos. Joseildo aprecia a morada no centro. "Para vir trabalhar pego só um ônibus e saio na frente da obra. Na volta, desço na Avenida Rio Branco, pego o Paiçandu e estou em casa."

Talento
Jesus de Paulo Pereira de Souza, 24 anos de idade, piauiense, há oito anos em São Paulo, estado civil "enrolado", três filhos, acorda às 4h30, sai de casa às 5 horas, pega dois ônibus, trem e mais um ônibus até o Piqueri, onde fica a sua frente de trabalho. Começa a trabalhar às 7h20 e vai até as 17h20, com uma hora de almoço e duas horas extras por dia. Ganha R$ 757,00, tem aumento prometido e acha que não se deve reclamar de barriga cheia. "Se falar: Jesus lave o banheiro, Jesus varra o chão, Jesus faz."

Jesus pede licença para contar que é músico. Diz que toca teclado, violão, guitarra e bateria, que compõe e faz jingles no estilo country. "Estou gravando um CD", revela. "Jesus vive de ilusão. Ele não toca nada", desmente o chefe dele, que tem a mania de dar umas incertas na casa de seus comandados para ver se eles fazem mesmo o que dizem - "Às vezes, o sujeito parece honesto, mas lá fora é uma tranqueira!"

Indiferente à intriga ("Desde quando o chefe entende de música?"), Jesus conta que gostaria de dedicar-se só às cordas e cifras, mas não é doido de trocar o certo pelo duvidoso. Ele e três irmãos dividem dois cômodos em Osasco. Todo mês enviam parte do salário para os pais, que ficaram no Piauí. Ainda outro dia, mandaram um televisor de presente.

Só no Lote 1, sob o Cebolão, são 630 peões, 520 diretamente no rio. Fazer a proteção de taludes exige muita gente, porque é um trabalho artesanal. Eles esticam a tela, enchem de pedras e as arrumam com as mãos, uma por uma. Horas naquela posição. Depois fecham a gaiola com outra tela. Por cima, vai o concreto.

Quem faz isso é Nenen, Ceará, Bingão, Lagoa, Mick Jagger (um peão com a cara do vocalista dos Rolling Stones), Papa-Tudo (um paraibano que come três marmitex numa refeição) e um tal de The Flash, que ganhou o apelido por causa da agilidade.

Aliás, ali se desfaz no rio o mito de que os nordestinos são preguiçosos. "Se fossem, não fariam esse trabalho duro", diz o engenheiro Eduardo Neila, que os chefia.

O encarregado de recursos humanos, Jean Alexander Paulina, traça o perfil do pessoal que trabalha no rio paulista. A maioria vem do Norte ou Nordeste e trabalhou na construção civil, tem entre 24 e 35 anos, mora na periferia, mantém a família daqui e ajuda os parentes que deixou na terra natal.


ROSA BASTOS
do jornal O Estado de S. Paulo

 
 
 

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