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OPINIÃO
Mercado mundializado ignora imperativos ético-biológicos da produção de alimentos
A comida se tornou uma commodity
MARCELO LEITE
EDITOR DE CIÊNCIA
Seria um exagero dizer que as condições para as epidemias por ora continentais de encefalopatia espongiforme bovina (BSE, a doença da vaca
louca) e de febre aftosa foram criadas
pela inclusão da agricultura
no Acordo Geral de Tarifas e
Comércio (mais conhecido
por Gatt), em 1994. Mas é
certo que sua explosão guarda ao menos alguma relação
com o movimento geral de liberalização do comércio
mundial que levaria ao Gatt,
destinado a transformar a
comida -assim como tudo
o mais sobre a Terra- numa
commodity, mesmo que para isso fosse preciso dar o
passo temerário de relaxar
padrões sanitários.
Os defensores do comércio desregulamentado dirão que não houve relaxamento algum. Todo um novo sistema global de parâmetros de saúde
foi erigido, com mais de 20 comitês de
especialistas reunindo-se no âmbito
de organismos como SPS (Padrões
Sanitários e Fitossanitários, na sigla
em inglês), TBT (Barreiras Técnicas
ao Comércio) e Codex Alimentarius
-proliferação que mais parece burocratizar do que prevenir doenças,
providência sempre suspeita de representar protecionismo velado.
Além disso, um quarto dos que têm
assento nesses organismos vêm de indústrias interessadas na mundialização do alimento, como ressalta o pesquisador Tim Lang num trabalho de
1996. Dos participantes de origem
não-governamental, nada menos do
que 96% representam a indústria. Difícil acreditar que estejam ali para defender, em primeiro lugar, a saúde
pública (é bom ter em mente o exemplo da indústria do tabaco).
O problema maior da BSE e da aftosa está na própria mobilidade da carne e na sua mundialização como ícone de consumo urbano, fenômeno já
batizado de "burguerização". Segundo o Worldwatch Institute
(www.worldwatch.org), a produção
mundial de carnes passou de 44 milhões de toneladas em 1950 para 217
milhões em 1999, mais que duplicando a produção mundial per capita.
À medida que se urbaniza, a população -mesmo em países pobres-
troca a dieta tradicional de grãos e vegetais ricos em fibras por outra, recheada de gorduras e açúcares, tendência conhecida como "transição
nutricional" (correlata da chamada
transição demográfica, caracterizada
pela queda da taxa de fertilidade e pelo aumento da expectativa de vida).
Cinco lanchonetes McDonald's são
abertas a cada dia, quatro delas fora
dos Estados Unidos. É o mercado global capitalizando a atração fatal (provavelmente inscrita nos genes) exercida sobre o homem por comidas doces e/ou gordurosas, as mais energéticas e, assim, capazes de melhorar as
chances de sobrevivência e reprodução dos primeiros hominídeos.
Para satisfazer tanto apetite por carne, o agronegócio mundializado teve
de entregar-se a práticas insustentáveis. Por serem biorreatores muito
ineficientes na transformação de proteína vegetal em animal (8 kg de grãos
para 1 kg de carne), bois e vacas viram
misturada em sua ração proteína animal que de outro modo seria descartada -carcaças, de gado bovino mesmo ou de outros animais, como ovelhas. Dessa transformação de seres
herbívoros em carnívoros e, pior, canibais teriam resultado as condições
para as moléculas infecciosas da BSE
(príons) saltarem barreiras entre espécies, alcançando até a humana.
Esse movimento coordenado de ascensão de parcelas crescentes da população mundial na cadeia alimentar
contradiz uma lei ecológica básica, a
de que carnívoros sempre ocorrem
em número menor do que herbívoros
e plantas. Isso exerce uma pressão irresistível sobre a produção de grãos,
por exemplo. Mais de um terço dela,
hoje, é reservada à fabricação de ração para bois, porcos e galinhas.
É essa demanda por proteína, também, que explica a explosão do cultivo da soja, que saltou de 17 milhões de
toneladas em 1950 para 154 milhões
em 1999 (aumento de nove vezes,
contra a mera triplicação da produção de trigo, milho e arroz). Só um décimo da soja colhida no mundo se
destina à alimentação humana.
Não há volta para a urbanização,
por certo, nem parece razoável sonhar com o renascimento da produção local e artesanal da própria comida. Mas também não é difícil de perceber que BSE e febre aftosa podem
ser apenas os sintomas de uma moléstia global, que começa na idéia fixa
da infinitude dos recursos naturais e
termina no delírio de que, com a biotecnologia, em 50 anos, será possível
incluir 9 bilhões de pessoas nos padrões de consumo de energia e alimentos hoje vigentes em países ricos.
Há que considerar a chance de que
o banquete acabe em pesadelo. Afinal, foram os próprios economistas
liberais que consagraram o princípio
de que não existe almoço de graça.
Colaborou Leonardo Cruz, de Londres
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