São Paulo, domingo, 13 de maio de 2001


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EPIDEMIA

Pesquisa indica que 26% dos ingleses deixaram de comer carne devido à febre aftosa

Doenças revolucionam alimentação no Reino Unido

DE LONDRES

Lisa, 9, é uma menina britânica como outra qualquer. Vai à escola pela manhã, faz aulas de dança e flauta durante as tardes e adora os Anjinhos, personagens de um desenho animado de sucesso no Reino Unido. Para descobrir o que há de diferente nessa garota de cabelos lisos e loiros, de bochechas coradas e olhos castanhos, basta lhe oferecer um hambúrguer. "Não como carne, porque minha mãe me falou que pode fazer mal", diz.
A negativa de Lisa é um exemplo de como os problemas relacionados à carne, constantes no Reino Unido desde a década passada, estão provocando alterações nos hábitos dos britânicos.
A menina, que ainda não sabe explicar como um hambúrguer pode fazer mal, é influenciada por seus pais, John e Margaret Lorry, que pararam de comer carne em fevereiro. Naquele mês, o vírus causador da febre aftosa foi detectado entre animais de uma fazenda de Heddon-on-the-Wall, no norte da Inglaterra. Era o início de uma epidemia. Hoje o Reino Unido soma mais de 1.500 casos confirmados de animais doentes.
O aflovírus, que provoca ferimentos na boca, nas patas e nas mamas de vacas, ovelhas e porcos, propaga-se rapidamente, pelo ar, pelo contato entre animais e pela água. Dois meses depois de os primeiros casos terem surgido no norte da Inglaterra, mais de 1.800 fazendas no país haviam sido afetadas pela doença, que também já era encontrada na França, na Holanda e na Irlanda.
O impacto maior foi, sem dúvida, no Reino Unido. Para conter a epidemia, cerca de 2,5 milhões de animais foram sacrificados. Estima-se que a doença, que só deve estar totalmente controlada no início de junho, provocará um prejuízo de 30 bilhões de libras, o equivalente a 3,6% do PIB britânico. Desse total, 5 bilhões de libras são da indústria turística; por causa da aftosa, estradas e parques foram fechados, e festivais, cancelados. Em Cumbria, uma das áreas mais atingidas, o movimento nos hotéis caiu 80%. No feriado de Páscoa, 60% dos britânicos que planejavam viajar dentro do país cancelaram suas programações.
Além de afetar o lazer do britânico, a aftosa também mudou os hábitos alimentares locais. Em recente pesquisa do instituto NOP, 26% dos entrevistados disseram que estão comendo menos carne por causa da epidemia.

Vaca louca
No levantamento, a população ainda aponta uma outra razão para a redução do consumo: o medo do mal da vaca louca, doença mais antiga, que atinge o gado britânico desde os anos 80, provocando degenerações no cérebro do animal.
Em 1996, cientistas descobriram que o consumo de carne contaminada pelo mal da vaca louca pode provocar a doença de Creutzfeldt-Jakob, que afeta o cérebro do homem e mata. É diferente da carne com aftosa, que não tem efeito sobre humanos.
Assim como a aftosa, o mal da vaca louca surgiu no Reino Unido, mas se espalhou pela Europa durante os anos 90. A situação se agravou no ano passado, quando países como Alemanha e Espanha registraram seus primeiros casos da doença.
A primeira consequência disso foi a queda do consumo de carne bovina. Segundo dados da União Européia, a população dos 15 países da comunidade come hoje 25% menos carne do que em 1995. Na Alemanha e na Espanha, a queda chegou a 40%.
"As pessoas estão perdendo fé naquilo que comem", afirma o jornalista John Humphrys, autor de "The Great Food Gamble" (O Grande Jogo da Comida, editora Hodder & Stoughton), em que ele analisa as mudanças nos hábitos alimentares dos britânicos nos últimos anos.
Humphrys apresenta números para mostrar que, por causa desse medo da comida, há uma "revolução em curso no Reino Unido". O jornalista se refere ao aumento da procura por alimentos orgânicos, produtos elaborados de forma mais natural. Na lavoura, são verduras, frutas e legumes produzidos sem agrotóxicos. Na pecuária, é a criação de gado extensiva, sem aplicações de hormônios e sem o uso de rações com proteína animal.

Crescimento
Desde 1996, quando o medo do mal da vaca louca atingiu seu auge no Reino Unido, o consumo de alimentos orgânicos cresce em média 40% ao ano. É um mercado que movimenta 500 milhões de libras, o equivalente a 5% de tudo o que os supermercados britânicos vendem. Hoje, uma em cada três pessoas compra orgânicos regularmente no país.
O interesse por um alimento mais saudável também é sentido no resto da Europa. Nos últimos dois anos, a procura por comida orgânica cresceu 25% entre os franceses. "A mensagem está clara para quem quiser ver: a humanidade precisa trabalhar com a natureza, não contra ela. Essa é a lição que temos de aprender do desastre da vaca louca. Não podemos transformar vacas em canibais", avalia Franz Fischler, comissário para Agricultura da União Européia.
Quando fala sobre o "desastre da vaca louca", Fischler se refere à forma como a doença se proliferou. Durante os anos 80, para aumentar a produtividade de seus animais, fazendeiros britânicos fizeram diversas experiências com seu gado. Uma delas foi alimentá-lo com ração fabricada com restos de sangue, ossos e cartilagem dos próprios bois, transformando animais herbívoros em carnívoros. Acredita-se que a doença tenha se propagado por meio dessa ração, produzida com restos de animais doentes por muitos anos.
No Reino Unido, criadores que "trabalharam com a natureza" nunca enfrentaram problemas com a vaca louca. Dos 170 mil animais britânicos contaminados pela doença, nenhum caso foi encontrado em rebanhos totalmente orgânicos. (LEONARDO CRUZ)

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