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TERRA DE NINGUÉM
Conhecido no RS como "abigeato", tráfico de animais pode causar surto de aftosa
Contrabando de gado ameaça fronteira Brasil-Argentina
LÉO GERCHMANN
DA AGÊNCIA FOLHA, EM URUGUAIANA
Felizberto Fagundes olha preocupado para o horizonte, esperando o inimigo. Não há trincheiras, mas há terra de ninguém: o
rio Uruguai, ladeado por mato e
cascalho. E há um invasor, o vírus
da febre aftosa, que tomou de assalto a Argentina, o Uruguai e, no
fim de semana passado, aportou
no Rio Grande do Sul.
"É fácil atravessar o rio e trazer
qualquer carga. Ninguém sabe,
ninguém vê", conta Fagundes,
dono da estância que fica do lado
brasileiro da fronteira e de algumas vacas que acabaram surrupiadas durante a madrugada, naquilo que é conhecido pelo palavrão ""abigeato" -furto de gado.
Ele é um dos moradores da região de Uruguaiana, na fronteira
Brasil-Argentina, que divide com
outros produtores e autoridades o
pânico pela volta aos pastos gaúchos da febre aftosa, que se materializou na semana passada.
Desastre na Argentina
Para a economia argentina, a aftosa foi um desastre. O país exportou em 2000 US$ 597 milhões
em carne. Ao admitir a existência
de cerca de 80 focos da doença
neste ano, seus principais mercados (EUA, Canadá, União Européia e Brasil) pararam de comprar
carne do país -além de subprodutos animais e insumos vegetais
de áreas onde há o vírus. No Uruguai, a situação é ainda mais grave: há mais de cem focos, e a carne
compõe 80% de sua pauta de exportações.
O novo foco brasileiro surgiu
em Santana do Livramento, cidade onde bairros se confundem
com os da uruguaia Rivera, facilitando o trânsito do vírus da aftosa. O governo gaúcho iniciou a vacinação do rebanho na região.
Os 130 quilômetros de extensão
da margem que banha Uruguaiana e Barra do Quaraí são outro
ponto de permeabilidade extrema. O Exército informou ao prefeito de Uruguaiana, Caio Riela
(PTB), que não há instruções para
patrulhar a área, apesar de o governo federal ter dito que isso
ocorreria. ""Não há nem sinal do
Exército", diz o prefeito.
Os militares dizem não ter sido
informados. ""Não podemos fazer
nada sem recebermos orientação
do Ministério da Defesa, o que
não ocorreu. Somos apenas executores", diz o coronel Otávio
Freitas, chefe do Estado-Maior da
2ª Brigada de Cavalaria Mecanizada, que cuida da região.
""Sempre houve contrabando de
gado, de ambos lados. Agora, a
coisa está mais séria, com a aftosa", diz o prefeito de Barra do
Quaraí, Ely da Rosa, também do
PTB, fazendo coro com Riela.
A preocupação é fundamentada. A região, além de viver da pecuária, é considerada uma das
portas de entrada para o vírus
-transmissível pelo ar- no
país. Barra do Quaraí é aquela
pontinha no mapa do Brasil que
serve de bifurcação entre Argentina e Uruguai. Uruguaiana fica acima, junto à Argentina.
Cabeças boiando no rio
Com 126 mil habitantes, Uruguaiana tem 80% da sua economia (um Produto Interno Bruto
de R$ 400 milhões) dependente
da agricultura (especialmente o
arroz) e da pecuária -370 mil
bovinos e 300 mil ovinos. Em Barra do Quaraí (3,8 mil habitantes),
90% da economia dependem da
agricultura e da pecuária.
A doença não mata o gado, mas
causa feridas em suas patas e bocas que o levam a não comer, podendo causar a morte por desnutrição. O vírus sobrevive ao abate,
e o manuseio da carne perto de rebanhos pode espalhar a doença.
O alvo dos contrabandistas, argentinos ou brasileiros, é sempre
o pequeno proprietário rural. A
forma como atuam é quase sempre a mesma, diz a polícia, e as
ações ocorrem nas madrugadas
de quinta e sexta-feira -visando
abastecer o tradicional churrasco
de fim de semana com carne mais
barata do que a do açougue.
Estimativas não-oficiais falam
em mais de 10 mil cabeças de gado
ilegais circulando e alimentando
pequenas comunidades rurais e
açougues clandestinos em cidades gaúchas. Contrabandistas
atravessam os trechos mais estreitos do rio e retornam da Argentina com até cinco ovelhas ou bois.
Na margem brasileira, tiram a
carne do animal e jogam carcaça e
vísceras no rio.
O proprietário da loja de material para pesca Sanáutica, Sérgio
Sakai, confirma a história. ""Num
domingo desses, estava no meio
do rio com o meu barco e vi cabeças de ovelha boiando.
São resquícios do contrabando." O delegado Jorge Luís Carvalho dos Anjos, de Uruguaiana, diz
que há, no mínimo, a
abertura de um inquérito
por "abigeato" por dia.
Em Uruguaiana, o ""rodolúvel" (desinfecção de
rodas de veículos com líquido à base de iodo) na
ponte com Paso de los Libres (Argentina) é a única medida efetiva contra
a entrada da aftosa -que
já se manifestou na cidade vizinha.
O prefeito sustenta que
a situação é mais grave
por estar subordinada à
disputa política entre o governo
petista do Estado e o ministro da
Agricultura, Pratini de Moraes
(PPB), que é gaúcho.
O secretário estadual da Agricultura, José Hermeto Hoffmann,
sempre fez campanha pela vacinação, que agora começou. Pratini diz que não seria a medida
ideal, porque demonstraria falta de confiança no
produto.
""Há preocupação
quanto à inconsistência
do esquema do governo
do Estado no controle da
aftosa", disse Pratini, nome cotado para concorrer pelo PPB ao governo
do Estado em 2002.
O Rio Grande do Sul receberia o status de área livre sem vacinação em
2000, mas os focos de Jóia
impediram a medida.
Dez Estados, entre eles o
maior criador de bois do país, o
Mato Grosso do Sul, foram considerados livres neste ano. Os gaúchos têm 13 milhões de cabeças de
gado. Há ainda 6 milhões de ovinos, também suscetíveis à aftosa.
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