São Paulo, domingo, 13 de maio de 2001


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TERRA DE NINGUÉM

Conhecido no RS como "abigeato", tráfico de animais pode causar surto de aftosa

Contrabando de gado ameaça fronteira Brasil-Argentina

LÉO GERCHMANN
DA AGÊNCIA FOLHA, EM URUGUAIANA

Felizberto Fagundes olha preocupado para o horizonte, esperando o inimigo. Não há trincheiras, mas há terra de ninguém: o rio Uruguai, ladeado por mato e cascalho. E há um invasor, o vírus da febre aftosa, que tomou de assalto a Argentina, o Uruguai e, no fim de semana passado, aportou no Rio Grande do Sul.
"É fácil atravessar o rio e trazer qualquer carga. Ninguém sabe, ninguém vê", conta Fagundes, dono da estância que fica do lado brasileiro da fronteira e de algumas vacas que acabaram surrupiadas durante a madrugada, naquilo que é conhecido pelo palavrão ""abigeato" -furto de gado.
Ele é um dos moradores da região de Uruguaiana, na fronteira Brasil-Argentina, que divide com outros produtores e autoridades o pânico pela volta aos pastos gaúchos da febre aftosa, que se materializou na semana passada.

Desastre na Argentina
Para a economia argentina, a aftosa foi um desastre. O país exportou em 2000 US$ 597 milhões em carne. Ao admitir a existência de cerca de 80 focos da doença neste ano, seus principais mercados (EUA, Canadá, União Européia e Brasil) pararam de comprar carne do país -além de subprodutos animais e insumos vegetais de áreas onde há o vírus. No Uruguai, a situação é ainda mais grave: há mais de cem focos, e a carne compõe 80% de sua pauta de exportações.
O novo foco brasileiro surgiu em Santana do Livramento, cidade onde bairros se confundem com os da uruguaia Rivera, facilitando o trânsito do vírus da aftosa. O governo gaúcho iniciou a vacinação do rebanho na região.
Os 130 quilômetros de extensão da margem que banha Uruguaiana e Barra do Quaraí são outro ponto de permeabilidade extrema. O Exército informou ao prefeito de Uruguaiana, Caio Riela (PTB), que não há instruções para patrulhar a área, apesar de o governo federal ter dito que isso ocorreria. ""Não há nem sinal do Exército", diz o prefeito.
Os militares dizem não ter sido informados. ""Não podemos fazer nada sem recebermos orientação do Ministério da Defesa, o que não ocorreu. Somos apenas executores", diz o coronel Otávio Freitas, chefe do Estado-Maior da 2ª Brigada de Cavalaria Mecanizada, que cuida da região.
""Sempre houve contrabando de gado, de ambos lados. Agora, a coisa está mais séria, com a aftosa", diz o prefeito de Barra do Quaraí, Ely da Rosa, também do PTB, fazendo coro com Riela.
A preocupação é fundamentada. A região, além de viver da pecuária, é considerada uma das portas de entrada para o vírus -transmissível pelo ar- no país. Barra do Quaraí é aquela pontinha no mapa do Brasil que serve de bifurcação entre Argentina e Uruguai. Uruguaiana fica acima, junto à Argentina.

Cabeças boiando no rio
Com 126 mil habitantes, Uruguaiana tem 80% da sua economia (um Produto Interno Bruto de R$ 400 milhões) dependente da agricultura (especialmente o arroz) e da pecuária -370 mil bovinos e 300 mil ovinos. Em Barra do Quaraí (3,8 mil habitantes), 90% da economia dependem da agricultura e da pecuária.
A doença não mata o gado, mas causa feridas em suas patas e bocas que o levam a não comer, podendo causar a morte por desnutrição. O vírus sobrevive ao abate, e o manuseio da carne perto de rebanhos pode espalhar a doença.
O alvo dos contrabandistas, argentinos ou brasileiros, é sempre o pequeno proprietário rural. A forma como atuam é quase sempre a mesma, diz a polícia, e as ações ocorrem nas madrugadas de quinta e sexta-feira -visando abastecer o tradicional churrasco de fim de semana com carne mais barata do que a do açougue.
Estimativas não-oficiais falam em mais de 10 mil cabeças de gado ilegais circulando e alimentando pequenas comunidades rurais e açougues clandestinos em cidades gaúchas. Contrabandistas atravessam os trechos mais estreitos do rio e retornam da Argentina com até cinco ovelhas ou bois. Na margem brasileira, tiram a carne do animal e jogam carcaça e vísceras no rio.
O proprietário da loja de material para pesca Sanáutica, Sérgio Sakai, confirma a história. ""Num domingo desses, estava no meio do rio com o meu barco e vi cabeças de ovelha boiando. São resquícios do contrabando." O delegado Jorge Luís Carvalho dos Anjos, de Uruguaiana, diz que há, no mínimo, a abertura de um inquérito por "abigeato" por dia.
Em Uruguaiana, o ""rodolúvel" (desinfecção de rodas de veículos com líquido à base de iodo) na ponte com Paso de los Libres (Argentina) é a única medida efetiva contra a entrada da aftosa -que já se manifestou na cidade vizinha.
O prefeito sustenta que a situação é mais grave por estar subordinada à disputa política entre o governo petista do Estado e o ministro da Agricultura, Pratini de Moraes (PPB), que é gaúcho.
O secretário estadual da Agricultura, José Hermeto Hoffmann, sempre fez campanha pela vacinação, que agora começou. Pratini diz que não seria a medida ideal, porque demonstraria falta de confiança no produto.
""Há preocupação quanto à inconsistência do esquema do governo do Estado no controle da aftosa", disse Pratini, nome cotado para concorrer pelo PPB ao governo do Estado em 2002.
O Rio Grande do Sul receberia o status de área livre sem vacinação em 2000, mas os focos de Jóia impediram a medida. Dez Estados, entre eles o maior criador de bois do país, o Mato Grosso do Sul, foram considerados livres neste ano. Os gaúchos têm 13 milhões de cabeças de gado. Há ainda 6 milhões de ovinos, também suscetíveis à aftosa.


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