Livraria da Folha

 
02/06/2010 - 10h12

Pelé explica o discurso sobre as crianças no milésimo gol; leia trecho de autobiografia

da Livraria da Folha

Em 1969, o homem pisou na Lua pela primeira vez. No entanto, para a maioria dos brasileiros, especialmente os santistas, o ano é lembrado pelo milésimo gol de Pelé.

No dia 19 de novembro, num Maracanã lotado, o jogador foi derrubado na área pelo zagueiro Fernando, do Vasco --que até hoje contesta o lance-- e o juiz marcou pênalti. Com 999 gols marcados e diante do estádio inteiro gritando seu nome, Pelé cobrou com direito a paradinha. O goleiro do time adversário, o argentino Andrada, bem que tentou defender, mas não conseguiu.

Divulgação
Lançamento conta a vida do rei do futebol em formato "scrapbook" e mais de 70 imagens
Lançamento conta a vida do rei do futebol com formato "scrapbook" e mais de 70 imagens

Na ocasião, o discurso de agradecimento do craque gerou polêmica. Antes de dar uma volta olímpica no estádio, Pelé teve tempo de dizer aos repórteres: "Vamos proteger as criancinhas necessitadas". Em seguida, foi taxado de demagogo.

No livro, "Pelé: Minha Vida em Imagens", o rei do futebol esclarece, entre outras coisas, a comemoração em prol da educação dos pequenos brasileiros. A autobiografia é ilustrada com mais de 70 imagens e ainda traz réplicas de documentos e outros itens considerados de colecionador pelos fanáticos pelo esporte.

Leia abaixo um trecho do quarto capítulo, intitulado "Glória".

*

O jogo seguinte seria dali a apenas três dias, contra o Vasco da Gama, no Maracanã. E as apostas, mais uma vez, estavam lá em cima. O maior estádio do mundo estava cheio, a ponto de explodir de tanta gente. Era um 19 de novembro, Dia da Bandeira. Os times entraram em campo segurando juntos uma bandeira, havia uma banda militar no gramado e balões foram soltos no céu. Era um ótimo dia para comemorações.

A maioria dos torcedores presente ao Maracanã provavelmente queria ver o gol, mas os jogadores do Vasco estavam dispostos a frustrar a todos nós. Eles procuravam me irritar, davam tapinhas na minha cabeça dizendo: "Não vai ser hoje, Crioulo". Fizeram tudo o que podiam para me impedir de marcar. O goleiro do Vasco, Andrada, argentino, estava em excelente forma. Veio então um cruzamento perfeito na minha direção para que eu cabeceasse. Tive a sensação de que finalmente tudo acabaria ali, quando um jogador do Vasco, Renê, se antecipou e cabeceou contra o seu próprio gol.

Até mesmo isso parecia preferível para eles a me dar a chance de fazer o gol.

Alguma coisa tinha de aparecer e me dar essa chance. E ela aconteceu. Fui derrubado quando avancei dentro da área e o árbitro marcou o pênalti. Apesar do protesto dos vascaínos, ele manteve a decisão. E esse pênalti eu iria bater.

Pela primeira vez na minha carreira, senti-me realmente nervoso. Nunca sentira tamanha responsabilidade. Estava tremendo. Agora era comigo. Meus companheiros de equipe me deixaram sozinho e se alinharam no centro do gramado.

Corri para a marca do pênalti, como em câmera lenta, e chutei...

Antes de concluir, permito-me uma digressão sobre o modo como bato pênaltis. A arte de bater bem um pênalti está em colocar a bola exatamente no lugar onde o goleiro não está. Os goleiros procuram adivinhar onde o cobrador irá colocar a bola, e os cobradores, ao mesmo tempo, tentam enganá-los jogando em outra direção. Lembro-me de ter visto, durante um treino da seleção, em 1959, Didi inventar um novo truque. Ele correu para a bola, mas antes de chutar, deu uma paradinha e olhou para ver para onde o goleiro se movia. Nessa fração de segundo, ele avaliou para onde seria melhor chutar a bola e, é claro, bateu o goleiro. Achei uma ideia brilhante - situada no limite da regra, pois supõe-se que você deva chutar a bola
antes que o goleiro se mova. Na verdade, o goleiro começa a se mexer antes de você dar o chute - de modo que olhar para ele pouco antes de chutar deixa você em posição de vantagem.

Embora credite a ideia a Didi, o fato é que ele nunca a aplicou em uma partida oficial. E eu o fiz. O lance ficou conhecido, no Brasil, como "paradinha", pois eu sempre corria na direção da bola e brecava um pouco enquanto olhava para o gol e então dava o chute. Os goleiros se queixavam de que isso não era justo, e, em 1970, a FIFA proibiu a paradinha. Hoje em dia os árbitros estão menos inflexíveis, e tenho visto alguns jogadores retomarem o lance.

Voltando ao Santos e Vasco de 19 de novembro de 1969. Corri para a marca, dei uma paradinha, e chutei.

Goooooooool!

Corri direto para o fundo da rede, peguei a bola e dei um beijo nela. O estádio explodiu, com rojões e aplausos. De repente fui cercado por uma multidão de jornalistas e repórteres. Colocaram microfones na minha frente e eu então dediquei aquele gol às crianças do Brasil. Disse que tínhamos de dar atenção para as criancinhas. Comecei, então, a chorar, fui colocado sobre os ombros de alguém e ergui a bola para o alto. O jogo foi suspenso por vinte minutos, enquanto eu dava uma volta olímpica. Alguns torcedores do Vasco correram em minha direção e me deram uma camisa do time com o número 1000. Achei estranho, mas não tive alternativa a não ser vesti-la ali mesmo.

Por que falei das criancinhas? Naquele dia, era aniversário de minha mãe, então talvez eu devesse dedicar o gol a ela. Não sei por que não pensei nisso. Mas, diferentemente, na hora, pensei nas crianças. O que aconteceu foi que me lembrei de um acidente que tinha acontecido em Santos alguns meses antes. Eu tinha saído do treino um pouco mais cedo e vi alguns garotos tentando roubar um carro que estava perto do meu. Eram muito pequenos, do tipo para quem se costuma dar um dinheirinho para tomar conta do carro. Chamei a atenção deles para o que faziam, e eles replicaram que eu não precisava me preocupar pois só roubariam carros com placas de São Paulo. Mandei-os sair dali, dizendo que eles não roubariam carro de nenhum lugar. Lembro-me de ter comentado sobre isso, mais tarde, com um companheiro de time, sobre a dificuldade de se crescer e educar no Brasil. Já então me preocupava com a questão da educação das crianças, e essa foi a primeira coisa que surgiu em minha cabeça quando marquei o gol.

Acho que muita gente não entendeu o que eu estava querendo dizer. Fui um pouco criticado, com pessoas me chamando de demagogo. Achavam que eu não tinha sido sincero. Mas isso não me incomodou. Acredito ser importante que pessoas como eu mandem mensagens sobre a questão da educação. Não haverá futuro se você não educar os jovens. Hoje, quando você anda pelo Brasil e vê os problemas que temos, com gente morando nas ruas e gangues em ação, elas também já foram crianças. Agora dizem que o Pelé estava certo. Não tenho medo de falar com o coração.

*

"Pelé: Minha Vida em Imagens"
Autor: Edson Arantes do Nascimento
Editora: Cosac Naify
Páginas: 100
Quanto: R$ 140,00
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha.

 
Voltar ao topo da página