Livraria da Folha

 
18/03/2010 - 18h06

Mauro Beting narra campanha da seleção da Hungria na Copa de 1954; leia trecho

da Livraria da Folha

Divulgação
Conheça as melhores equipes dos países rivais na Copa do Mundo
Conheça as melhores equipes dos países rivais na Copa do Mundo

A equipe húngara de Ferenc Puskás, campeã olímpica de 1952, foi batida pela Alemanha Ocidental por 3 a 2 na partida final da Copa de 1954. Ainda assim, até hoje, é considerada a melhor daquela edição do torneio.

Mauro Beting partilha da opinião da maioria. Em seu novo livro, "As Melhores Seleções Estrangeiras de Todos os Tempos" (Editora Contexto, 2010), o jornalista descreve o time como "uma conjunção extremamente feliz que originou um dos maiores (não) campeões de todos os tempos".

Além da Hungria, ele narra as campanhas da Inglaterra em 1966, da Holanda e da Alemanha --ambas em 1974, da Itália em 1982, da Argentina em 1986 e da França em 1998.

O livro é um verdadeiro guia que conduz os leitores pela história do futebol mundial, com narrativas empolgantes, imagens de várias Copas do Mundo, lista de convocados das seleções e um detalhamento de todos os esquemas táticos das equipes escolhidas.

No trecho abaixo, o autor relata como foi que o time de Puskás se tornou a sensação da década de 1950.

*

Hungria de 1954

Chefe da comissão técnica. E tem mais! Você também é o segundo homem que mais apita no Ministério do Esporte. Não acabou! É presidente do comitê olímpico! E, de brinde, pode montar clubes, desfazer times, agendar amistosos, organizar campeonatos, e preparar a seleção para ganhar o ouro olímpico e a Copa do Mundo, com cinco anos de prazo para fazer tudo isso! Você tem o direito de reunir os convocados quando e quanto quiser. Já agrupados em apenas duas equipes base montadas do jeito que você quiser!

Esse pacotão de presente era tudo que teve o húngaro Gusztav Sebes. Não houve homem mais poderoso no planeta do futebol. Ele era tudo isso. Sabia muito de bola. E pôde contar com uma maravilhosa geração com a bola nos pés, com a cabeça e as mentes no lugar, e os corpos bem treinados em regime militar. A Seleção de Ouro da Hungria na primeira metade dos anos 1950 não era só um processo esportivo. Era um projeto político. Uma afirmação nacional. Um dogma comunista. Sebes era o catalisador. Até nas preleções tabelava política com futebol, socialismo com filosofia de jogo. Poderia haver algo mais coletivo que um time vencedor? Poderia haver algo mais socialmente justo que um grupo campeão pela doação a um bem comum?

A Hungria não era apenas uma revolução técnica, tática e física - era um projeto de Estado, a melhor propaganda do governo comunista. Como toda equipe, nasceu da individualidade, potencializada pelo conjunto harmônico e bem dirigido. Sem o "pé de obra" qualificado, não passaria de propaganda enganosa. Foi uma conjunção extremamente feliz que originou um dos maiores (não) campeões de todos os tempos. A seleção acima de ideologias. O futebol total e totalitário. A Seleção de Ouro nos Jogos Olímpicos de 1952, em Helsinque, prata na Copa da Suíça em 1954. Tropa de elite dispersa pelo chumbo da Cortina de Ferro em 1956.

Plano quinquenal

A Hungria tinha reputação de bom e ofensivo futebol. Na Copa de 1938, perdera a final para a Itália, mas não o rumo do gol. Em maio de 1947, em Budapeste, uma vitória sobre a Áustria por 5 a 2 começava a mostrar uma equipe e uma geração ainda mais ofensivas, técnicas e abusadas. Em agosto, um 9 a 0 sobre a Bulgária mostrou o caminho. Outros bons resultados foram chamando a atenção de clubes da Europa Ocidental. O centromédio Joszef Bozsik quase foi parar na França. Outros talentos começaram a ser cortejados por salários de profissionais (os húngaros, oficialmente, eram "amadores", com todas as aspas e pompas). Até Sebes assumir o comando do futebol húngaro e estabelecer o seu "plano quinquenal". Não era esse o nome, mas a intenção manifesta: ganhar a Copa de 1954, cinco anos depois.

Desde 1949, Gusztav Sebes convocava o escrete para, nos meios de semana, correr a Hungria atrás da bola e de amistosos. Quase uma seleção permanente, dispersa nos fins de semana para os jogos dos clubes. Naquele time que fechou 1949 marcando 4,7 gols em média por partida, já despontavam o cerebral centromédio Bozsik, os jovens meias Sandor Kocsis e Ferenc Puskas, e os pontas Laszlo Budai e Zoltan Czibor. Encantado com a performance e o projeto, Sebes contou com seu poder para preparar o planejamento estatal: queria entrosamento parecido com o da Itália campeã mundial em 1934, que tinha oito atletas que atuavam pela Juventus ou pela Internazionale. Foi o que inspirou a seleção húngara a ter entre os titulares sete de um time, e três de outro. Para tanto, Sebes mexeu pauzinhos e grades: tirou da prisão o zagueiro Gyula Lorant (denunciado por espionagem e por liderar o movimento de atletas que desejavam ganhar dinheiro pela Europa jogando por um clube "pirata") e o colocou para trancar a zaga do clube montado para ser o orgulho nacional - e do governo.

O time que depois viria a ser a seleção nacional já existia na capital e se chamava Kispest, terceiro colocado em 1949. Virou Honved (defensores da pátria, em húngaro), em 18 de dezembro de 1949. Era um clube de pouca torcida em Budapeste, e não avesso ao regime comunista como Ferencvaros, o clube mais popular. Mais fácil de manipular e brincar de futebol de botão. Nele já atuava uma dupla que se conhecia praticamente de berço (eram vizinhos de porta): Bozsik e Puskas. Logo depois do zagueiro Lorant, em 1950, chegaram o goleiro Gyula Grosics (o "Pantera Negra"), o ponta-direita Laszlo Budai e o meia-atacante Sandor Kocsis. Este, um torcedor fanático do Ferencvaros, mas seduzido pela companhia ilimitada e pelas benesses de atuar pelo time dos "homens" e do exército. O clube não contratava - recrutava. Era melhor jogar pelo exército que servi-lo. Atuando pelo Honved, era dever andar de farda, desfilar em paradas militares. Mas as mordomias e contrabandos no exterior eram garantidos. Melhor que servir nas fronteiras. Ou ser impiedosamente vencido nos campeonatos nacionais.

Até a Copa de 1954, o Honved ganharia quatro títulos nacionais; os outros dois seriam conquistados pelo outro time base - ou satélite: o MTK, ligado à Polícia Secreta húngara, a AVH (a KGB do país). Bela equipe do centroavante Nandor Hidegkuti, do quarto-zagueiro Jozsef Zakarias, do lateral-esquerdo Mihaly Lantos e de outros três reservas selecionáveis, entre eles o atacante Peter Palotas.

Seleção de Ouro

Treinando como seleção desde 1949, os resultados não poderiam ser outros. Nos Jogos Olímpicos de Helsinque, em 1952, um show: cinco vitórias, quatro gols em média por jogo, apenas dois sofridos. O ouro no peito, e a encomenda do governo a Sebes para 1954: nada além da taça Jules Rimet seria tolerado pelo regime comunista. Ele sabia. E o time, embora não conhecesse a ameaça, pressentia. Mas não tinha receio de nada. Sabia como ganhar. Em 1952, foram dez vitórias, com 45 gols a favor e apenas seis contra.

Os excessos de um time de futebol alegre em campo (e vida muuuito alegre fora) não foram aceitos: Budai, Kocsis e Czibor chegaram a ser afastados de um amistoso por estarem animados em dobro, a ponto de quase caírem de quatro, bêbados. Só foram perdoados por prometerem atuar em triplo no jogo da vida para a Hungria: em 25 de novembro de 1953. Wembley. Contra a pátria mãe da bola, a Inglaterra.

O convite para o confronto viera da federação inglesa na noite em que a Hungria arrasara por 6 a 0 a Suécia, na semifinal olímpica, em Helsinque. Quando, nas palavras do velho Puskás, a seleção apresentara o protótipo do que viria a ser, 22 anos depois, o "futebol total" da Holanda, em 1974: intensa movimentação, jogadores não guardando posições, polivalência, técnica, tática e condicionamento físico apurados, marcação adiantada, e um imenso prazer em buscar o gol. Tudo aquilo que a Inglaterra não imaginava saber nem jogar. Para melhorar, a Hungria seguia treinando e atuando junta, em 1953. O excelente ponta-esquerda Czibor era mais um na constelação proletária do Honved. A seleção que brilhara em 1952 era a mesma daquela temporada. Apenas com a fixação de Hidegkuti no comando do ataque. Ou com a camisa 9. Porque, na prática, ele era o primeiro centroavante indigno do nome. Era muito mais um meia que recuava para abrir espaços para os outros meias (Kocsis e Puskas) entrarem em diagonal. Ou pelos cantos. Por todos os lugares na pobre área rival.

O esquema era novo na seleção. Mas não no futebol húngaro. Marton Bukowi, treinador do MTK, é o pai não-reconhecido do 4-2-4 que seria popularizado pelo Brasil de 1958. Não por acaso dirigido por Vicente Feola, auxiliar de Bela Gutman (treinador que o São Paulo foi buscar no futebol húngaro para ser campeão paulista de 1957). A gênese do 4-2-4 foi o maior legado tático deixado pela seleção húngara. A primeira grande mudança no mais popular esquema tático da história: o WM, introduzido em 1925 por Herbert Chapman, no Arsenal inglês. Assim chamado por formar as duas letras no gramado, se olhadas de cima: três zagueiros, dois médios defensivos, dois meias ofensivos e três atacantes. Em números, um 3-2-2-3. Em letras, o WM.

O clássico sistema britânico consistia numa defesa formada por três zagueiros em linha (dois laterais e um central); dois médios defensivos de cada lado formando um quadrado na intermediária com dois meias-armadores ofensivos; e dois pontas e um centroavante no ataque. Passou a ser um edito imperial na Inglaterra e em quase todo o planeta o WM. Ou 3-2-2-3, em números.

Os húngaros subverteram o jogo. À frente e atrás. Na zaga, recuaram o médio defensivo esquerdo para a defesa, deixando o zagueiro-central na sobra de uma linha de três beques: os laterais marcavam os pontas rivais, esse médio recuado ficava com o centroavante, e sobrava um zagueiro (ou vice-versa, dependendo da equipe ou do rival). Pronto: a zaga já tinha os quatro atrás, não mais três. No meio-campo, o médio que sobrava ganhou a companhia de um dos meias-armadores, mais recuado. Esse dava um pé na marcação, e começava o jogo. Era o segundo da intermediária. O primeiro pensador da equipe.

À frente, estava o ponta de toque húngaro. Ou o centroavante recuado. O ponta de lança que deixava a área e recuava para pensar o jogo. O MTK e Bukowi foram pioneiros ao bolar um camisa 9 que não ficasse enfiado entre os zagueiros rivais e buscasse jogo mais atrás, trocando de posição com os dois meias, que entravam em seu espaço, que se mexiam, que faziam os gols por ele. Bukowi queria maior movimentação do centroavante, então um poste fixo na área, marcado por um beque que não poupava pancada. Ele achava que os jogadores precisavam se mexer para buscar espaços e confundir a marcação. Nos treinos, chegava a trocar de função os atacantes e zagueiros. Um absurdo à época.

O que o MTK de Bukowi bolou, a seleção húngara burilou com Sebes. Nos Jogos Olímpicos de Helsinque, em 1952, o centroavante recuado foi Palotas. Mas, por problemas cardíacos, não apresentava a mobilidade exigida. Algo que Hidegkuti tinha de sobra, além de notável técnica e admirável conhecimento tático. No primeiro amistoso depois da Olimpíada, em setembro de 1952, assumiu a função, na brilhante virada sobre a Suíça por 4 a 2. O time ficou mais inteligente, mais tático, mais veloz. Fala Puskas: "Nosso time jogava bem demais sem a bola. E o centroavante recuado foi nossa obra-prima".

Nos treinamentos durante a semana da seleção (praticamente) permanente a partir de 1949, Sebes e seu treinador de campo, Gyula Mandi, criavam muitas situações de jogo - algo raro até então. Com a ajuda dos atletas, ficava mais fácil. Os pontas Budai e Czibor, e o meia-direita Kocsis chegavam a tentar até 100 vezes alguns lances nos treinos. Gostavam demais dos treinamentos que viravam quase brincadeira. Mesmo quando a coisa ficou mais séria depois da conquista do ouro olímpico, em 1952. Mesmo quando a Inglaterra virou adversária.

O maior amistoso de todos os tempos

Match of the Century. Era o chamado da imprensa inglesa para a tarde de quarta-feira, 25 de novembro de 1953. O English Team jamais havia perdido no estádio de Wembley. Desde 1901, a seleção inglesa não era derrotada em Londres por uma seleção estrangeira. Desde a primavera de 1950, a equipe húngara não era batida. Eram 19 vitórias em 22 jogos. Até hoje, nenhuma outra partida que não valia "nada" valeu tanto quanto aquele jogo. Um divisor de águas tático, um multiplicador técnico. O réquiem do WM.

Os ingleses estudaram os húngaros. Assistiram aos jogos dos rivais em 1953, como a espetacular vitória na Itália por 3 a 0, em maio. Os húngaros sabiam um pouco mais dos ingleses. Ao menos Gusztav Sebes: assistira um mês antes ao empate por 4 a 4 da Inglaterra contra um combinado mundial, em Wembley. Na véspera, calçou chuteiras e mediu o gramado. Chegou a observar a posição do Sol para melhor pensar a partida. Pediu as bolas que seriam usadas na partida (eram mais pesadas que as comuns na Hungria). Durante três semanas, treinou a seleção contra equipes armadas rigorosamente no WM inglês.

Torcida e imprensa adoravam o time húngaro. Mas desconfiavam das chances contra os inventores do futebol. Dez dias antes, um empate sem sal contra a Suécia por 2 a 2 baixou a bola. Não do time, que ficou aceso pelas críticas. Sebes aproveitou e, na véspera, por mais de quatro horas (!), mostrou o que precisava ser feito em Wembley. O exagero não se repetiria mais. Sebes aprenderia que era melhor deixar os craques da equipe decidirem a estratégia a ser usada no dia do jogo. O ofensivo lateral-direito Jenö Buzanszky disse que a sorte da Hungria era ter autênticos "computadores" em campo, que sabiam programar - e reprogramar - uma partida. Eles eram Bozsik, Puskas e Hidegkuti. Além disso, a equipe trabalhava demais.

Para Wembley, Sebes havia definido a tática a ser usada:

- Eu queria [o centroavante] Hidegkuti flutuando em um redemoinho com nossos atacantes para confundir a zaga inglesa. A defesa deles se sentiria obrigada a segui-lo e isso abriria espaços para o Bozsik vir de trás e armar com os meias Puskas e Kocsis. Lá na defesa, a ideia era contar com o recuo de nossas pontas, e com o Zakarias na zaga, deixando
o Lorant como líbero.

Para Puskas, bastava a bola rolando para eles saberem o que fazer. "Em cinco minutos, a gente entendia o que era preciso, quais as deficiências do adversário. O treinador não precisava falar pra gente."

Dez minutos antes do apito inicial, o capitão inglês, o médio-direito Billy Wright, disse que ficou mais tranquilo ao ver as leves chuteiras usadas pelos húngaros - se comparadas às pesadas chancas inglesas. Ao final do jogo, ele admitiu que esse foi um dos tantos erros cometidos...

Logo na saída, Puskas fez sete embaixadinhas e tocou com categoria para Czibor, que fez as graças dele. Serviu para quebrar um pouco o gelo. Mas o iceberg britânico só precisou de 43 segundos para ser derretido: Bozsik tocou para Hidegkuti invadir como quis a área e mandar no ângulo do goleiro Merrick. Os ingleses haviam tocado duas vezes na bola e já perdiam em casa para os reinventores do futebol. O gol foi tão bonito que boa parte de Wembley aplaudiu. A outra parte tremeu quando a Inglaterra saiu com a bola, apenas 26 segundos depois do gol. Não se celebrava tanto um gol. Por mais motivos que existissem.

Os dois pontas húngaros Budai e Czibor eram (ou deveriam ser) marcados pelos dois zagueiros-laterais ingleses. Além disso, ainda recuavam para ajudar na contenção aos pontas rivais; como Hidegkuti saía da área o tempo todo, o central Johnston se perdeu e boiou, mais que sobrou; para piorar, os dois marcadores do quadrado do meio-campo inglês não encontraram Kocsis e Puskas, que se mexiam muito, e jogavam demais. E ainda tinha Hidegkuti, o melhor em campo. Praticamente três criadores ficaram livres - e mais o imenso centromédio Bozsik, jamais acompanhado pelo meia-esquerda inglês Sewell (que se juntava aos três da frente inglesa). Razoavelmente livre ficava o meia-direita inglês Taylor, com o recuo de Zakarias para a zaga. Mas ele parecia foragido em campo. Escondeu-se.

Os três zagueiros húngaros tiveram muitas dificuldades com o ataque inglês, sobretudo Stanley Matthews e Mortensen. Mas a pálida partida do ponta-esquerda Robb facilitou para o lateral Buzanszky. Se tudo ainda desse errado, sobrava Lorant, de boa atuação na zaga, e o goleiro Grosics, que ao menos uma vez saiu da área para afastar com os pés, como um segundo líbero. O primeiro na Europa - na Argentina, Amadeo Carrizo já dava show atuando adiantado.

A Hungria respondia aos ataques ingleses com classe e categoria, focando em Budai, o ponta, pela direita, que era marcado pelo zagueiro Eckersley como se esse fosse um guarda inglês que não pode se mexer. Com 10 minutos, quatro chances já haviam sido criadas pelo time húngaro. Aos 11, o árbitro Leo Horn foi mais inglês que holandês, e anulou absurdamente um gol de Hidegkuti, que entrou livre na área. Os pais do futebol tinham uma defesa que era uma mãe para os húngaros. E os deuses da bola ainda oravam pelos criadores: o empate de Sewell, aos 11, caiu do céu. Também porque a defesa húngara, exposta pela natureza, foi ainda mais infeliz no combate. A semente do rombo defensivo que se viria em 1954 estava sendo plantada em Wembley.

Hidegkuti coroou os brilhantes 19 minutos dele e de todo o time desempatando o jogo, na sétima chance de gol húngara. Um massacre ainda maior pelo fato de, com a bola, a Inglaterra não atuar mal. Mas, na marcação, parecia um time sub-10 enfrentando um exército romano super-20. A Hungria jogava colorido em hd de futebol moderno. A Inglaterra era uma fotografia esmaecida na parede. Emparedada por um time agressivo.

Aos 23, o mais belo gol da carreira de Puskas: Budai recuou e lançou Czibor, o ponta-esquerda, que apareceu pela direita (!), livre às costas de uma aparvalhada linha de impedimento mal feita pelos ingleses. Ele avançou, foi ao fundo e serviu Puskas, no bico da pequena área direita. Num drible seco, de futsal, deixou o capitão Wright perdido e estatelado no gramado, e fuzilou Merrick.

Três minutos depois, numa cobrança de falta sem barreira (os ingleses não faziam barreira...), Bozsik atirou da meia direita, Puskas esticou a perna, e matou o jogo. Mas não a sede húngara. Aos 32, Kocsis só não ampliou porque o goleiro defendeu a cabeçada depois de uma impressionante impulsão do meia. Ou seria centroavante? Aos 39, Budai perdeu a última chance de gol húngara em 45 minutos - a 14ª!

Os ingleses ainda descontaram no fim do primeiro tempo. Na segunda etapa, Puskas foi atuar aberto à esquerda, com o ponta Czibor dando um pé a Lantos na contenção a Matthews. Os húngaros retomaram do 4 a 2. A Inglaterra contava os minutos. Diz o central Johnston, aquele que não sabia se ia atrás de Hidegkuti, se ficava, ou se mudava de profissão: "A tragédia do nosso time foi a sensação de total impotência. Tínhamos a perspectiva terrível de sermos impiedosamente goleados". E não faltavam bons jogadores aos ingleses. O genial ponta-direita Stanley Matthews tentava algo. Mas Grosics impedia. Aos 5 minutos, o quinto gol. Falta da mesma posição onde Bozsik chutara a bola do quarto gol. E você acha que os ingleses se importavam? Ninguém na barreira. Para ficar mais bonito, a Hungria resolveu inovar. Ou repetir lance ensaiado: bola na testa de Kocsis, bola no travessão, bola aos pés de Bozsik, bola na rede de Merrick.

Não faça como os ingleses. Não perca a conta: o sexto gol veio aos 8 minutos, o terceiro (hat trick) de Hidegkuti. A aliteração não altera o produto. Depois de 21 segundos de posse de bola e de tabelinha de cabeça entre Kocsis e Budai, Puskas deu um balãozinho para um sensacional sem-pulo de Hidegkuti, o melhor entre tantos melhores em campo. Quase todo Wembley aplaudiu. O árbitro não se segurou e deu um tapinha nas costas de Puskas. O mundo não vira nada igual.

Nem a Hungria veria mais gols. Grosics deu um jeito de deixar a partida menos magiar ["Magiar" é sinônimo de húngaro. Termo bastante apropriado para aquela seleção]; e cometeu um pênalti tolo. Alf Ramsey, futuro campeão mundial em 1966, como treinador, diminuiu, apenas 24 segundos depois do pênalti. Um jogo de cavalheiros. Mas um jogo espetacular.

A Inglaterra ainda fez mais um, e criou ao menos oito chances de gol. Muito. Mas quase nada perto das 21 oportunidades húngaras. Foram 35 finalizações. A Inglaterra não chegou a dez. E chegaria ao fim toda uma era. Define Bobby Robson, bom treinador do English Team, falecido em 31 de julho de 2009, vítima de câncer: "Até aquele jogo, nós [ingleses] pensávamos que todo mundo era nosso pupilo, que nós éramos os mestres. Contra a Hungria, tudo mudou. Eles eram os masters. Nunca mais fomos os mesmos".

O jogo marcou tanto que até o uniforme a Inglaterra mudou. Inspirados nos húngaros, camisas e calções passariam a ser mais justos. Mas o futebol, sabidamente, é injusto. E aquela partida, que ajudou a mudar a história do futebol, não mudaria o placar da final da Copa de 1954.

*

"As Melhores Seleções Estrangeiras de Todos os Tempos"
Autor: Mauro Beting
Editora: Contexto
Páginas: 240
Quanto: R$ 33,00
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha.

 
Voltar ao topo da página