20/06/2004
O REVERSO DO MITO
O deus do futebol argentino luta para se livrar do inferno das drogas
CECILIA REZENDE
DA EQUIPE DE TRAINEES
A relação de amor e ódio entre
Maradona e a cocaína comove a
Argentina há 13 anos. A cada escândalo referente ao consumo de
drogas, ou a cada crise de saúde
enfrentada pelo ex-jogador-- foram pelo menos nove, entre uma e outra, desde
1991--, os torcedores choram a
seu lado e o apóiam. Mas dessa
vez o desapontamento deu lugar
ao desespero, ao medo de perder
para sempre seu maior ídolo vivo.
"Maradona vem sendo visto em
sua queda desde o mundial de 94.
Há muito de piedade com relação a ele", disse à Folha o sociólogo argentino Alberto Quevedo, fã
confesso do ex-jogador.
Ele foi uma das milhares de pessoas que correram às portas da
clínica Suíço-Argentina, onde
Maradona foi internado depois
de sua primeira crise. Rezaram
por sua recuperação, renderam-
lhe homenagens, gritaram palavras de incentivo, fizeram panelaços, mensagens de apoio e suvenires acumularam-se diante das
portas do local. "Tínhamos a sensação de que ele estava nos deixando. Nos últimos tempos, há
mais um sentimento de compaixão diante de um homem que está desmoronando."
Maradona sempre se definiu
como um rebelde. Carrega no
braço uma tatuagem com o rosto
de Che Guevara, escolheu viver
em Cuba e é amigo pessoal de Fidel Castro. Sempre afirmou estar
pronto para lutar contra injustiças e contestar poderosos. Mas
em sua cruzada pessoal, não tem
conseguido livrar-se de seu maior
inimigo.
Há um mês, está em um centro
neuropsiquiátrico, nos arredores
de Buenos Aires. A decisão de
mantê-lo internado na Argentina
partiu de sua família, que resolveu
tomar as rédeas da luta contra o
vício. A internação é o último recurso para tentar salvá-lo da dependência.
"Dadas as características do
problema, seria imprescindível a
internação em uma clínica especializada", afirma a professora titular de toxicologia da faculdade
de medicina da Universidade de
Buenos Aires, Norma Vallejo.
Maradona, entretanto, não esconde seu desejo de voltar a Cuba.
Apesar de contrariado, ele tem
reagido bem ao tratamento. Sergio Daniel López, sobrinho de
Maradona, diz que, aos poucos,
"ele está se dando conta de que
era necessário, pois sua saúde já
não andava muito bem". Seu coração chegou a funcionar com
apenas 35% de sua capacidade total.
A equipe médica que o está
acompanhando prefere, ao menos por enquanto, manter sigilo
sobre o tratamento do jogador, limitando-se a divulgar boletins
diários sobre a evolução de seu estado de saúde.
O secretário argentino de Programação para a Prevenção da
Drogadicção e Luta contra o Narcotráfico, Wilbur Grimson, diz
que o tratamento consiste em desintoxicação seguida de internação para combater a dependência. Durante a desintoxicação,
apenas medicação psiquiátrica é
empregada. Ao longo do tratamento, sessões de psicoterapia
são aliadas a antidepressivos, ansiolíticos e sedativos leves para reduzir a irritabilidade excessiva, as
alterações do estado de ânimo e a
falta de equilíbrio psicológico,
causadas pela ausência da droga.
Sintomas que sempre passaram
despercebidos pela família. "É do
temperamento de Maradona irritar-se em um momento e, no outro, já estar calmo." diz López.
"Estamos esperando para ver o
que Diego vai fazer de sua própria vida. Tomara que ele canalize suas forças para um tratamento definitivo, que o converta em
uma pessoa integral", diz Grimson, que torce pela recuperação
do ex-jogador.
Diego Maradona é o maior ídolo argentino vivo, na opinião de
todos os argentinos ouvidos pela
Folha. É amado e idolatrado como um deus, mesmo quando está
fora da Argentina. Em Nápoles,
cidade italiana onde viveu por sete anos, Maradona é visto ainda
hoje como um herói. Enquanto
jogou pelo Napoli, o time foi duas
vezes campeão italiano. Bons
tempos, diriam os napolitanos.
Hoje a equipe joga na terceira divisão italiana.
Para o psicanalista argentino
Rodolfo Urribarri, Maradona é
uma figura mítica no imaginário
argentino e, por isso, sempre será
o melhor jogador do mundo.
"Antes de conhecer a cocaína, as
pessoas já estavam a seu lado. E
ainda que tenha problemas com
isso, nunca deixarão de apoiá-lo."
Urribarri acredita que Maradona tem para os argentinos uma
importância maior que a que Pelé
teve para o Brasil. "Ele despertou
uma paixão que vai além de sua
capacidade desportiva, além do
reconhecimento mundial. Isso é
algo que nenhum outro jogador
de futebol conseguiu. Ele pode se
dar ao luxo de fazer coisas que a
outros custariam a carreira."
O consumo desenfreado de drogas foi o grande responsável pela
decadência do maior jogador argentino de todos os tempos. Por
duas vezes, foi banido de jogos
oficiais em todo o mundo, por períodos de 15 meses. Chegou a ser
preso com dois amigos em 1991,
na Argentina, quando foi flagrado
sob o efeito de drogas e com meio
quilo de cocaína. Assumiu-se como dependente químico em 96,
após repetitivas suspeitas de doping. Abandonou a carreira um
ano mais tarde, a pedido do pai,
seu Diego, que passou mal após o
boato de que um exame antidoping do filho havia dado positivo.
Mas por que, afinal, tem sido tão
difícil para ele se livrar da dependência?
Para Urribarri, a questão é mais
complicada do que parece ser. Ele
diz que dependentes inveterados
não podem prescindir do bem-estar que a droga causa. "Por isso vivem transgredindo, escapando,
fazendo o possível para voltar a
consumir a droga."
Ele afirma ter observado casos
de usuários regulares de cocaína,
bem-sucedidos em determinados
aspectos de suas vidas que, em
parte, atribuíam seu sucesso ao
consumo de cocaína. Acreditavam que a droga lhes conferia um
poder especial. "É como o espinafre do Popeye", diz o psicanalista.
No início de 2000, após uma crise decorrente do consumo exagerado de cocaína, o ex-jogador decidiu morar em Cuba e se internar
na clínica La Pradera, na verdade
um spa.
Polêmico, Maradona sempre
emitiu opiniões que se afinam
com os anseios da parcela mais
pobre da população argentina,
que vê nele um representante legítimo-- ele próprio oriundo dela,
nascido em um bairro pobre, na
periferia de Buenos Aires. De
acordo com Quevedo, Maradona,
consciente do fascínio que exerce
sobre as pessoas, nunca abriria
mão do poder. Por isso, ele não vê
a escolha de morar na ilha como
mero acaso. "Viver na Argentina
é muito difícil para Maradona,
aqui ele é perseguido, acossado e
criticado pela imprensa. Já em
Cuba ele vive numa espécie de reserva ecológica maradoniana,
além de ser amigo do presidente.
Se ele vivesse no Brasil, nos EUA
ou na Espanha, provavelmente
não estaria tão próximo do poder."
É notável que em entrevistas,
quando fala de sua carreira, Maradona se refira a si mesmo na terceira pessoa. Mas quando relata
de seus problemas com as drogas,
fala de si próprio. Quevedo diz
que existem dois Maradonas, um
"positivo" e outro "negativo".
"Há o ídolo, o jogador que mais
alegrias nos deu. E há o do excesso, que se droga, que é arrogante,
que come demais, que opina sobre tudo."
O sociólogo diz que esse Maradona falastrão cansa os argentinos. "Há o desejo de que viva,
mas também há o desejo de que
se cale, de que amadureça e que
deixe de ser o centro de tantas polêmicas. Tudo o que ele faz se
transforma num novelão."
No entanto, ele acha difícil que
isso aconteça. "A Argentina está
cheia de história de gente que foi à
África e que, não sabendo como
se comunicar, disse a palavra 'Maradona!', e então se abriram todas
as portas. Existe a mitologia de
que o mundo se rende a ele."
Quevedo diz que há um pacto
de amor incondicional entre o
torcedor argentino e ele, que
cumpriu o sonho de ser campeão
mundial, de vencer a Inglaterra
depois da Guerra das Malvinas,
de fazer o gol mais bonito de todas as Copas. Nem as atitudes
mais destemperadas de Maradona, como atirar contra repórteres
que se aglomeravam na frente de
sua casa, em 94, foram suficientes
para ofuscar seu brilhantismo.
O sociólogo afirma que mesmo
na hipótese de que o Maradona
"negativo" cresça-- se ele continuar vivendo imprudentemente--, a única coisa que não diminuirá é o amor das torcidas de futebol pelo homem que mais alegrias deu à Argentina. Assim como se dizia de Evita, segundo Urribarri, "ele é eterno na alma de
seu povo". Ou ainda, segundo o
próprio Maradona, "la pelota no
se mancha" (a bola não ficará
manchada).