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Vícios modernos
20/06/2004

Íntegra: Quando a aposta vira obrigação

Eles passam o dia no bingo, faltam o trabalho para jogar, armam estratégias para vencer a incerteza, mas não se divertem com isso. Quanto mais perdem, mais jogam na tentativa de recuperar o que perderam. São os jogadores compulsivos.

O psiquiatra Hermano Tavares é coordenador do AMJO (Ambulatório de Jogo Patológico e Outros Transtornos do Impulso) do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Fundado em 1997, o ambulatório atende pessoas para as quais o jogo deixou de ser uma diversão. A seguir leia a íntegra da entrevista com Tavares.

Folha - Por que ocorrem transtornos associados ao jogo?

Tavares - Imagine você jogando. Chega às 9h para jogar, você deveria estar no trabalho, você mentiu para todo mundo, disse que ia levar o filho no médico, entrou no bingo, pegou o dinheiro do aluguel [R$ 1.500], colocou tudo na máquina e ficou torcendo para voltar o dobro. Não voltou o dobro, você ficou sem uma parte. Saiu correndo, sacou mais R$ 2.000, colocou na máquina e, no momento em que estava ganhando R$ 4.000 e deveria ter saído, ficou. "Agora tô com sorte, vou continuar". Aí, você sai zerado, volta para o trabalho, está todo mundo o procurando, querendo saber onde você estava. Você inventa uma desculpa qualquer, sai mais cedo do trabalho, pega mais R$ 1.000 emprestados e entra no Bingo. Perde, e agora você está devendo R$ 4.500. Como você irá chegar em casa feliz e animado? Você vive em permanente ansiedade.

Folha - Há uma média de quanto tempo uma pessoa sobrevive a esse esquema antes de buscar tratamento?

Tavares - Que tal 20 anos? A média dos nossos jogadores até buscar tratamento é de dez anos. Os homens levam mais tempo: de 15 a 20 anos e as mulheres bem menos, de 2 a 5 anos. Em alguns casos, como as mulheres progridem mais rápido no vício, elas levam apenas seis meses para começar a jogar, começar a ter problema, procurar ajuda e se livrar do vício.

Folha - A que você atribui essa diferença?

Tavares - Fizemos um estudo no qual constatamos que os fatores de risco para desenvolver o jogo patológico são sexo feminino, início tardio e preferência por jogo eletrônico. Quem começa a jogar depois dos 40 anos tem menos atribuições sociais, tem mais tempo e dinheiro disponíveis e mergulha mais fundo, de cabeça, no jogo.

Essa ausência de outras atividades dão ao jogo um caráter de exclusividade que torna o desenvolvimento mais intenso e a progressão mais rápida. Nunca ter jogado nada e ir direto para o jogo eletrônico é como nunca ter fumado nada e ir direto para o crack.

Folha - Por que essa associação entre os o jogo eletrônico e crack?

Tavares - Porque é o jogo que mais vicia. Vicia mais e mais rápido. Por várias razões. A principal é porque o jogo vicia mais rápido quanto mais curto é o intervalo entre a aposta e o resultado. Loteria é menos perigosa, embora eu atenda pacientes com dependência em loteria, mas é menos freqüente. Porque você faz uma aposta hoje e só tem o resultado daqui a uma semana. Quando você vai encurtando esse intervalo, o jogo vai ficando mais aditivo [neologismo eqüivalente a viciante].

Bicho por exemplo tem um potencial aditivo mais forte que loterias. A pessoa faz uma fezinha pela manhã, pega o resultado, reaposta à tarde, vem o resultado e reaposta à noite.

No jogo eletrônico, o intervalo é quase zero. A pessoa carrega a máquina com notas de R$ 50, aperta o botão e sai o resultado, aperta o botão e sai o resultado. Favorece a compulsividade porque a pessoa pode reapostar para recuperar suas perdas, que é um clássico do comportamento de loterias.

Folha - O que diferencia o jogador compulsivo daquele que tem o hábito de jogar?

Tavares - É o jogar para recuperar. Quando a pessoa tenta jogar para recuperar o que perdeu em apostas anteriores, o jogo perdeu a dimensão do lazer. Faço uma analogia pobre para explicar melhor esse comportamento. A pessoa vai ao cinema e os ingressos para o filme que ela queria ver já acabaram. Todos os outros filmes em cartaz são ruins. Mesmo assim, para não perder a viagem, a pessoa decide ver um outro filme. É aquele arrependimento. O que a maior parte das pessoas faz? Volta no dia seguinte para tentar recuperar o que perdeu? Não. A pessoa gastou R$ 40,00 para se divertir de uma forma não muito boa. Por que o jogador acha que tem de recuperar? Só se o bingo deixou de ser lazer para ser uma outra coisa.

Folha - Existe algum jogo que funcione como a porta de entrada para o vício?

Tavares - O ciclo natural dos jogadores em São Paulo é de uma pessoa que não tem experiência em jogo. Um dia entrou em um bingo com alguns amigos para experimentar. Pegou duas cartelinhas, ganhou um pouco, achou legal. Na vez seguinte, já voltou sozinho, o que faz alguma diferença. Às vezes ganhava, perdia. Começou a achar aquilo demorado e tedioso. Então, foi para o computador em que se joga o mesmo jogo com seis cartelas no mínimo. Por lei, ninguém pode jogar mais de 120 cartelas. Para jogar isso, só com o computador mesmo. Como não tem fiscalização, as pessoas jogam 80, cem séries [cada série tem seis cartelas] de uma única vez. Ao custo de R$ 1, R$ 2, o sujeito gasta R$ 1.220 numa aposta básica. É igual a droga: começa com uma carreirinha, depois fica leve, e vai direto para a veia. Essa escadinha é clássica, porém mais preocupante é quando a pessoa vai direto para a maquininha eletrônica.

Folha - É mais difícil de tratar?

Tavares - A evolução é mais rápida. O perfil do jogador mudou. Antes o jogador era um homem que começava a jogar, na juventude, em cartas. Depois ia para os cavalos e depois para o dominó. A progressão da doença levava de 15 a 20 anos. Nesse caso, há uma janela de oportunidade para prevenção muito grande. Agora, o jogador é uma mulher cujos filhos cresceram, ela tem tempo livre. Na primeira vez em que joga, ganha.

Se o bingo vai mesmo ser legalizado, é preciso que se destine uma porcentagem do que for recolhido para centros de prevenção e pesquisa em jogo patológico.

Folha - O tratamento do jogo patológico em comparação a outras dependências é mais fácil?

Tavares - Isso é uma boa notícia. O jogo como dependência tem muitas coisas em comum com álcool e drogas, mas tem suas peculiaridades. A primeira é: o jogo dessocializa muito rápido. Por outro lado, ele preserva muito mais a saúde física em relação a outras dependências. O paciente chega com condições cerebrais melhores. O paciente que abusa de álcool, às vezes, precisa de um ano para recuperar suas habilidades mentais porque o cérebro foi agredido. O jogo estafa, mas a capacidade de raciocínio perdura. Isso torna a psicoterapia o instrumento preferencial de abordagem desses pacientes com uma chance boa de sucesso. Apesar de ser uma doença grave, o jogo é uma condição tratável e tem um bom prognóstico quando corretamente tratado.

Folha - O que é corretamente tratado?

Tavares - Não existe um padrão de tratamento para o jogo. É preciso adequá-lo às necessidades do jogador. Mas o que nós temos dado ênfase é trabalhar a qualidade dos relacionamentos, os vínculos emocionais que o paciente estabelece.

O jogador, em geral, fantasia que tem que sustentar uma auto-imagem de protetor, de paizão de todo o mundo. O jogo entra nessa necessidade. Eventualmente, em um lance de sorte, pode-se ganhar muito dinheiro, pagar as dívidas e depois presentear todo mundo.

Existe algo pseudogeneroso por trás. Pseudogeneroso porque no fundo o que ele quer com isso é colocar-se como uma bela figura diante das pessoas. É essa necessidade que é questionada no tratamento.

O outro fator que a gente trabalha muito com os pacientes são concepções equivocadas sobre sorte, azar e eventos aleatórios. Um dos meus instrumentos de trabalho é esse [um dado]. O número que saiu na primeira vez em que o dado foi jogado não altera a probabilidade do mesmo número ou outro qualquer sair na jogada seguinte.

O jogador, no entanto, pensa: "Saiu o quatro da primeira vez. Está saindo uma seqüência de números pares. Da próxima vez é menos provável que saia o quatro." Isso é algo que eles adquirem progressivamente, à medida que aumenta o envolvimento com jogos de azar. Eles começam a ver padrões e fazer análises que têm um pseudosentido para explicar eventos aleatórios. Isso traz uma auto-confiança de que eles conhecem o jogo, de que têm experiência no jogo. É todo um conhecimento pautado em suas experiências anteriores. O problema é que como é um evento aleatório, não é porque quando a pessoa apostou na terceira coluna, nunca saiu a terceira linha quer isso vá se repetir, porque os eventos são aleatórios e independentes.

Folha - Então corrida de cavalo não é tão grave quanto bingo?

Tavares - É, sim. Porque se a pessoa apostar apenas na barbada ela dificilmente ganha dinheiro. Ela recebe de volta o que apostou. Às vezes até um pouquinho menos. Para a pessoa ter a chance de ganhar mais dinheiro nas apostas, ela têm que acertar trifeta. Mesmo a barbada não é livre de riscos.

Os jogadores que apostam em corridas de cavalos são mais difíceis de tratar. Eles, de fato, acumulam um conhecimento razoável. Eles estudam veterinária, sabem qual o cavalo que corre melhor na cancha [pista] molhada, na cancha seca, no inverno, no verão. E isso, em geral, permite que eles prevejam, com certa segurança, até o segundo lugar. Mas, à medida que se aumenta a quantidade de posições que a pessoa tem que acertar e de seqüências de apostas que a pessoa tem que realizar, é acrescentada incerteza ao modelo até que se torna um jogo de puro azar.

Alguns jogadores eu não consegui tratar porque eles insistiam que tinham um modelo de regressão linear que previa os resultados. Eu falava: "Então me traz." Ele dizia: "Você vai jogar com ele." Aí eu apertava mais o sujeito, ele falava: " Na verdade não sou eu que tenho, é o fulano que tem." Eu falava: "Então vê se o fulano cede." "Você está louco, ele não vai emprestar isso assim." Eu falava: "Então vamos acompanhar as apostas de fulano e ver se ele realmente ganha."

Aí eu notava um fenômeno muito engraçado --isso eu notava com colegas e amigos que gostam de apostar na bolsa de valores-- quando eles estão ganhando dinheiro eles sempre me procuram e falam: "Nossa, essa semana eu ganhei muito dinheiro na bolsa." E você, que põe seu dinheiro em um fundo de renda fixa para não correr risco, fica se sentido um idiota. Quando a bolsa cai, fulano desaparece por seis meses.

As perdas são silenciosas e as vitórias são barulhentas. Com isso, cria-se a ilusão de que se pode controlar os eventos. Uma ilusão que é facilmente rebativél quando se fala de loteria, de tudo que seja um sorteio. Em cavalo, como tem uma pequena margem de previsibilidade, sempre existem aqueles que se dizem capazes de prever o resultado ou de citar alguém que ficou rico jogando.

Folha - Qual a avaliação que o senhor faz dos jogadores anônimos e dos anônimos como um todo?

Tavares - Excelente. É o primeiro programa estruturado para o tratamento de jogo patológico que já existiu. Criado na década de 1950. E certamente é o programa mais popular, disponível em um vasto território e foi utilizado por um maior número de pessoas.

Psicologia e medicina desenvolveram seus próprios programas, mas nenhum deles tem a experiência que jogadores anônimos têm. O grande desafio dos jogadores anônimos --eu sempre converso com eles-- é organizar-se o suficiente para conseguir segurar as pessoas em tratamento. Eu tenho umas estastísticas que diz que de 8% a 10% das pessoas que procuram jogadores anônimos ficam. Se ficar vai se dar bem, mas a grande questão é como fazer essas pessoas ficarem.

Folha - Como é o tratamento no Amjo?

Tavares - Nós temos três programas que estamos testando em paralelo. Psicoterapia individual: sessões de 45 min, 40 sessões que dá mais ou menos a cobertura de um ano.

Tratamento de grupo: vinte sessões de 90 min, mais ou menos seis meses.

Modelo psicoeducacional: acompanhamento psiquiátrico (que os outros tipos de tratamento também têm), quatro aulas para os jogadores e paralelamente quatro aulas para um familiar indicado pelo jogador. Esse é um programa de economia de recursos. Menos completo do que os outros dois. Mas se esse programa funcionar bem, a idéia é replicá-lo. Treinar pessoas do SUS e oferecer tratamento para jogadores compulsivos em larga escala.

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