Treinamento Folha   Folha Online
   
Vícios modernos
08/06/2000

Contardo Calligaris: Não tem droga do cibersexo: somos apenas desejo-dependentes

CONTARDO CALLIGARIS

O CONSELHO Nacional (americano) sobre a Dependência e a Compulsividade Sexual publica uma revista acadêmica quadrimestral cujo último volume é consagrado ao sexo cibernético.

Os autores se levam absolutamente a sério. Consideram que o problema é grave: não só os usuários da Internet transitam frequentemente por páginas pornográficas, mas muitos se tornam dependentes de prolongadas masturbações na frente de imagens ou durante encontros virtuais on line.

Parece que mais de 200 mil americanos e americanas já dependeriam do sexo cibernético, como se ele fosse uma droga. Dizem que é uma epidemia, um problema de saúde pública.

Ora, lendo a revista, só fica claro que os autores das pesquisas não aprovam a masturbação eletrônica e provavelmente a masturbação em geral.

Mas não fica nada claro por que o cibersexo intensivo que eles descrevem constituiria uma espécie de toxicomania.

Talvez seja por se tratar de uma prática que os sujeitos repetem constantemente, mesmo quando ela acarreta riscos.

Por exemplo, alguém fica num bate-papo erótico durante o expediente, embora saiba que a empresa monitora o uso da Internet. Esta conduta arriscada evocaria o apelo irresistível das drogas, provando assim que se trata do mesmo tipo de dependência.

Engraçado, segundo esta lógica, qualquer comportamento que a gente goste e repita assiduamente, apesar de riscos e contra-indicações, seria uma tóxico-dependência: comer churrasco com colesterol alto, passar a noite conversando quando tem de acordar cedo, ver novela em vez de estudar, transar escandalosamente, mesmo se alguém no quarto ao lado não devesse ouvir etc.

Acuados, os defensores do modelo toxicomaníaco acrescentam que, para o viciado em cibersexo, o fato de tocar no computador já solta endorfinas no cérebro: uma reação química parecida, dizem, com o efeito produzido pelas drogas. De novo é engraçado, pois, que eu saiba, qualquer experiência prazerosa produz reações químicas cerebrais desse tipo. Será então que tudo o que a gente gosta e repete é dependência?

Muitos parecem pensar assim. Pois o caso do sexo é apenas um exemplo. A toxicomania está se tornando um modelo explicativo de uma vasta série de comportamentos.

Começou com o "workaholic" (o "trabalhocólatra"), que acumula horas de serviço como o alcoólatra desce copos.

Desde então, apareceram a jogo-dependência de quem é viciado em azar --da loteria ao pôquer--, a sexo-dependência de quem pensa só naquilo, a consumo-dependência de quem compra compulsivamente, a dívidas-dependência de quem nunca zera cartão de crédito e cheque especial, a leilão-dependência de quem não sabe se abster de dar lances. Chegaram enfim as múltiplas faces da dependência da Internet, com cibersexo, bate-papo etc.

O modelo tomou conta dos hábitos alimentares: há os carbo-dependentes que não param de comer massa, batatas e doces (carboidratos) e o mesmo para carne, açúcar e refrigerantes.

Todos esses comportamentos são socialmente reconhecidos como formas de toxicomania a ponto de, para cada um deles, serem oferecidas terapias de desintoxicação ou grupos de apoio nos moldes dos Alcoólatras Anônimos.

É óbvio que há uma diferença radical entre uma toxicomania e essas condutas que são apresentadas como se fossem toxicomanias.

No primeiro caso, as propriedades químicas de uma substância a tornam quase necessária na vida de um sujeito, muito além do que ele previa ou queria quando foi procurar algum gozo ou prazer nessa substância.

No caso dos comportamentos, nada nos induz a repetir estas condutas senão seu charme próprio, ou seja, o gozo ou o prazer que elas nos proporcionam.

Em outras palavras, se trabalhamos 17 horas por dia, comemos espaguete, apostamos um terço do salário no bicho e passamos as noites em cinemas pornográficos, é porque queremos e gostamos. Podemos achar que, em algum caso, nosso querer é meio estranho, incômodo, sintomático, até doentio, mas, de qualquer forma, essas condutas são as nossas --produzidas por nosso desejo e não por agentes químicos.

Sobra então a pergunta: por que circula com tamanha frequência e sucesso essa curiosa explicação toxicomaníaca?

Acontece que não gostamos de atribuir ao nosso desejo nada que seja ruim. Detestamos admitir que podemos achar prazerosos ou fascinantes os comportamentos que mais complicam nossa vida --sem falar da dos outros.

O desejo "normal" --o nosso, pensamos-- é aquele que nos ajuda a subir na vida, a ficar ricos, saudáveis, sorridentes e enxutos.

Qualquer outra tendência deve ser um percalço, um acidente --deve ter uma origem externa que nada tem a ver conosco. Quando desejamos algo torto, vai ver que somos vítimas de alguma intoxicação. Fomos drogados.

Ou então --outra solução fácil-- é por causa de desequilíbrios químicos (de origem misteriosa, mas externa) que alguma pílula poderá curar.

Em suma, podemos dormir tranquilos, pois somos naturalmente bons, queridos, felizes e bem-comportados. E se, às vezes, parecemos desejar coisas que contradizem este retrato angélico, deve ser, justamente, porque esses desejos são uma droga.

Texto publicado em 08/06/2000 - Folha de S.Paulo - Ilustrada

BLOG

BATE-PAPO PRÊMIOS ESPECIAL
Patrocínio

Content on this page requires a newer version of Adobe Flash Player.

Get Adobe Flash player


Philip Morris
AMBEV


Copyright Folha de S. Paulo. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress (pesquisa@folhapress.com.br).