São Paulo, quarta-feira, 5 de janeiro de 1994
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Duchamp teve uma musa brasileira

MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Marcel Duchamp, um dos mais influentes artistas deste século ao lado de Picasso, teve uma musa brasileira: a escultora Maria Martins (1900-1973).
Hoje, Maria caiu no ostracismo. Mas na Segunda Guerra e no pós-guerra conviveu em Nova York e Paris com alguns dos maiores artistas das vanguardas, entre eles o próprio Picasso, Mondrian, Breton, Brancusi, Léger etc. De Picasso, Maria tinha um dos estudos para "Les Demoiselles d'Avignon", pintado a óleo. De Duchamp (1887-1968), foi musa da instalação "Étant Donnés: 1.º la chute d'eau 2.º le gaz de éclairage..." (Sendo Dados: 1.º a cascata 2.º o gás de iluminação...).
O primeiro esboço que Duchamp fez da obra tinha um título mais longo ainda: entre "Étant Donnés" e "la chute" aparecia o nome de Maria. É de 1944. Mostra uma mulher nua com as pernas abertas. Maria Martins foi provavelmente a modelo.
"Não sei se eles tiveram um caso amoroso", diz Ignez Olimpia Maria Ceglia Simões, 38, neta de Maria. "Mas, pelos trabalhos que Duchamp dedicou a vovó, alguma coisa deve ter havido". Segundo ela, Maria "não teria problemas em posar para Duchamp porque era uma mulher supermoderna"
"Étant Donnés..." foi uma das obras mais demoradas de Duchamp: só ficou pronta em 1966. Durante 22 anos ele trabalhou em segredo.
É do período em que todos imaginavam que o artista havia parado de criar. Tolice. Segundo o poeta e crítico mexicano Octavio Paz, "Étant Donnés..." dialoga com "O Grande Vidro", talvez o mais mitológico dos trabalhos de Duchamp: "A máquina do 'Grande Vidro' é a representação de um enigma; o nu de 'Étant Donnés...' é o enigma em pessoa, sua encarnação", escreveu em "Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza" (leia abaixo a descrição da obra feita por Paz).
Como convém às musas, Maria foi misteriosa. Nenhuma das biografias de Duchamp cita seu nome. Só agora, 50 anos após eles terem se conhecido em Nova York, a história começa a ser desvendada. O catálogo da exposição de Duchamp no Palazzo Grassi de Veneza, encerrada em julho último, dá as primeiras pistas. Maria é citada 26 vezes na mais extensa cronologia do artista –são 410 páginas, um subproduto de 18 anos de pesquisa de Jennifer Gough-Cooper e Jacques Caumont sobre Duchamp.
Não pára por aí. O norte-americano Calvin Tomkins está preparando uma nova biografia de Duchamp e vai incluir sua relação com Maria Martins.
O mistério em torno de "Étant Donnés..." é compreensível. Enquanto as várias fases de Picasso podem ser divididas segundo as mulheres com quem ele viveu, Duchamp era tumular sobre sua vida privada. Sabe-se que se casou em 1927 com Lydie Sarazin-Levassor, ficou sete meses com ela e se pirulitou. Só em 1954 viria a se casar de novo, com Alexina Matisse, com quem viveu até 1968.
Filha de ministro
O lado feminino da história é mais complexo. Maria era filha de um ministro de Estado –João Luís Alves (1870-1925), que ocupou a pasta da Justiça no governo Artur Bernardes (1922-1924). Nasceu em Campanha, sul de Minas, terra de irmãs de Maria e de um tradicionalíssimo colégio católico, o Sacré-Coeur. Foi casada com o crítico literário e historiador Otávio Tarquínio de Souza (1889-1959).
Na metade dos anos 20, passou a viver com o diplomata Carlos Martins Pereira e Souza, quando isso ainda era um escândalo. Passaram pelo Equador, Holanda, Dinamarca, Japão e Bélgica. Quando Maria conheceu Duchamp, Pereira e Souza era o embaixador brasileiro em Washington, onde o casal viveu entre 1939 e 1948.
Foi o tédio de Washington que empurrou Maria para Nova York, segundo Jayme Maurício, 67, amigo da escultora e colunista de artes plásticas do jornal "Correio da Manhã". Viva o tédio de Washington. Em Nova York, Maria conheceu quase todos os artistas importantes da época e participou de uma exposição com Mondrian em 1943 que viria a se tornar lendária para ela (leia texto abaixo).
O primeiro desenho de "Étant Donnés..." é de 1944. Duchamp faria três outros trabalhos com o mesmo título –uma colagem, um couro pintado sobre relevo em gesso, montado em veludo, e um guache sobre plástico transparente. O primeiro pertenceu a uma das filha de Maria, Nora Martins Lobo. Tem a seguinte dedicatória no verso: "Cette dame appartient a Maria Martins/ avec toutes mes affections / Marcel Duchamp 1948/49" (Esta senhora pertence a Maria Martins/ Com todos os meus afetos/ Marcel Duchamp 1948/49). Foi vendido ao Moderna Museet de Estocolmo.
Maleta especial
Não foi a única obra que Maria ganhou de Duchamp. Ela teve cinco trabalhos, entre eles "Moulin à Café" (1911), que sua filha Ana Maria Robin Jones vendeu à Tate Gallery de Londres, e uma versão das "Bote-en-Valise", uma maleta de couro que continha 69 réplicas em miniatura de "ready mades" como o urinol e da tela "Nu Descendo a Escada". Este foi comprado pelo Museu de Arte Moderna de Toyama (Japão). Restou um trabalho com a família, "Prière de Toucher" (1947), um seio em gesso cujo título diz: "Favor não Tocar".
A maleta de Maria era especial. Tinha uma dedicatória de Duchamp com a data 6 de abril de 1946 e um trabalho chamado "Paysage Fautif".
Um exame feito pelo Museu de Arte da Filadélfia –que abriga as principais obras de Duchamp, inclusive a instalação "Étant Donnés..."– revelou o material de que é feito "Paysage Fautif". É esperma, provavelmente do próprio Duchamp.
"Étant Donnés..." e "Paysage Fautif" tratam de frustração sexual, segundo a historiadora norte-americana Francis Nauman, que escreveu sobre Duchamp e Maria na revista "Art in America" de setembro último. Para Nauman, ela foi "a mulher com que Duchamp nunca pôde estabelecer uma relação segura e duradoura". Maria era casada e tinha duas filhas.
Duchamp fez uma concessão em "Étant Donnés..." a sua futura mulher, ainda segundo Francis Nauman: tirou os cabelos pretos de Maria. Na versão final da instalação a figura feminina aparece loira, num tom próximo ao dos cabelos de Alexina.

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