São Paulo, quarta-feira, 12 de janeiro de 1994
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Heranças

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Na crônica anterior cometi o erro de contar com o ovo que ainda estava nas entranhas da galinha (esse "entranhas" é um esforço de linguagem). Folgava eu com a recusa dos partidos de dar cobertura eleitoral a Pedro Collor. Folguei em vão.
Oito horas antes de se esgotar o prazo para as novas filiações partidárias, o PRP do sr. Ademar de Barros Filho abrigou-o em seus quadros e assim teremos um Collor disputando vaga para deputado, prefeito, governador ou presidente da República. Tudo pode acontecer –a frase não é minha, é de Mefistófeles, na complicada negociação com a alma do dr. Fausto.
O meu erro tem antecedentes genéticos. Meu pai era repórter de "O Paiz", jornal que ficou na história da imprensa brasileira e chegou a ter Ruy Barbosa como redator-chefe. Profissional modesto, foi encarregado de cobrir os sermões do padre Júlio Maria na catedral, durante a Quaresma. Era prática parisiense ouvir Lacordaire, por exemplo, em Notre-Dame. Proust faz diversas referências a esses sermões quaresmais. Pois o Rio copiava Paris e o padre Júlio Maria tinha ibope fulminante. Meu pai ouvia seus sermões e os reduzia para o jornal.
No final de uma Quaresma, ele não foi a catedral, trocando-a por uma ceia incrementada nos "Zuavos", com aquelas espanholas que Machado de Assis, em seu tempo, chamava de "patuscas". A fama dos "Zuavos" e das citadas espanholas era a mais abominável na Lapa de então.
No final da noite, foi mole resenhar o sermão: consultou a coleção do arquivo, copiou o equivalente do ano anterior, trocou alguns adjetivos e entregou a matéria na oficina.
Júlio Maria morrera à tarde. Em lugar do sermão feito por ele, tivera velório feito pelos outros. "O Paiz" deu na primeira página a notícia de sua morte. Lá dentro, o sermão da véspera que o repórter fizera por ele. Só não foi a maior gafe de meu pai porque, anos depois, ele fez pior, gerando o filho que ora vos escreve. Mas voltemos ao erro da crônica de anteontem. Eu esqueci esse tipo de herança, que era filho de meu pai. E que o ex-governador Ademar de Barros tinha um filho.

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