São Paulo, sexta-feira, 14 de janeiro de 1994
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Manoel de Barros não é Shakespeare

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

José Geraldo Couto escreveu, no "Mais!" de domingo passado, uma reposta lúcida e cortês às críticas que dirigi nesta coluna à obra do poeta Manoel de Barros.
Eu tinha sido bastante violento, dizendo que seus poemas eram uma fraude, que tinham o gosto de um tempero "galinha caipira" dos macarrões Miojo.
Hesitei bastante antes de replicar ao artigo de José Geraldo. Um pouco porque, afinal, as coisas que ele disse são bastante verdadeiras. Sou formado numa tradição literária francesa, gosto de Proust e Valéry etc. Tendo a defender, como diz José Geraldo, tudo o que é "racional-discursivo", é uma militância de minha parte contra o "irracional- balbuciante" ou o "irracional-berrador" dominantes hoje em dia.
Mas não quero colocar um adversário tão inteligente como José Geraldo Couto no campo dos "irracionais antidiscursivos". Ele supõe, com certeza, que há outras coisas entre a oposição racionalismo/ irracionalismo. Há, por exemplo, a sensibilidade, o intuitivo, o inconsciente.
Longe de mim negar isso. Se eu negasse, virava tecnocrata.
Mas o que José Geraldo recomenda, como atitude crítica, é uma espécie de simpatia, de "abertura", de sensibilidade permeável diante de autores que fujam à rigidez de nossos padrões de gosto, que fujam ao "bom-gostismo", diz José Geraldo, característico de meus artigos.
Ele fala de uma "limitação" de sensibilidade, de uma "travação". Encastelado nas minhas preferências sacrossantas, torno-me insensível às artes de Zé Celso, de Lina Bo Bardi, de Caetano.
Mas a questão é quase de ordem lógica.
O que ele chama de "travação", de "limites", na minha atividade crítica, poderia ser traduzido por "critério", por "discriminação", se quisermos ter uma perspectiva mais favorável a meu respeito.
Evidentemente, nenhum crítico pode aspirar a uma "sensibilidade universal", a uma "abertura" intransitiva face ao que quer que apareça.
Fosse assim, eu também poderia dizer que José Geraldo Couto padece de umna "limitação" de sensibilidade ao defender, como ele fez num artigo excelente, o futebol contra a Fórmula 1.
Fosse assim, eu deveria elogiar tudo, de J. G. de Araújo Jorge e Manoel de Barros a Shakespeare, Dante, Goethe e Valéry.
O impasse lógico a que eu me referi acima deve, então, ser explicitado. Você só pode dizer de um crítico que ele foi "cego", que sofre de "limitações" na própria sensibilidade, quando você sabe que determinado poeta, espinafrado pelo crítico, é evidentemente um gênio. Sainte-Beuve foi um cretino quando não reconheceu o gênio de Baudelaire. É claro que ele mostrou nesse episódio seus limites como crítico.
Mas será que fui limitado, ou cretino, quando não reconheci gênio nenhum em Manoel de Barros? Isso só seria verdadeiro se o gênio de Manoel de Barros existisse.
É precisamente isto o que está em discussão.
Fui "limitado" ou fui "justo" dizendo que Manoel de Barros é uma fraude, está longe de ser Guimarães Rosa, é pior que Drummond etc.?
A pergunta não é fácil de responder. Nem eu nem José Geraldo podemos provar o acerto de nossas convicções.
Minha tentativa não foi de "provar" nada. A crítica, pelo menos no nível jornalístico, não "prova", tenta apenas persuadir. E a isso, cada um responde a seu jeito.
Achei que as barbaridades apontadas no meu artigo sobre a poesia de Manoel de Barros eram suficientes para fazer um entusiasta de "Gramática Expositiva do Chão" pensar um pouco mais sobre os méritos desse autor. Vejo que não fui suficientemente persuasivo.
Mas eu dizia acima que estava bem hesitante ao tentar responder a José Geraldo.
Enquanto fazia o artigo sobre Manoel de Barros, li o livro de I.A. Richards, "Practical Critician", sobre os erros, os preconceitos, os automatismos que prejudicam qualquer apreciação autêntica da poesia.
Richards valeu-se de um expediente diabólico: submeter a leitores, a estudantes bem-formados, uma série de poemas, sem dizer qual era o autor de cada texto.
O resultado é divertidíssimo e inquietante. O leitor "A" considera o poema n.º 1 "tolo", "banal", óbvio no seu esquema rítmico e nas rimas escolhidas. O leitor "B" acha que o mesmo poema é "delicado", "comovente em sua simplicidade", "direto".
A diversidade das respostas a toda obra de arte é imensa. Richards, em 1929, procurava fortalecer a idéia de que uma "objetividade", uma serenidade crítica são necessárias à apreciação da poesia. Eram os começos daquilo que veio a ser chamado de "New Criticism".
Numa esperança de objetividade, Richards identifica uma série de defeitos e cegueiras que impedem o leitor de "ler bem" uma poesia. Desde a incompreensão pura e simples até o que ele chama de "stock responses", respostas prontas –do gênero "isso é lindo", "isso é trivial", e ao que ele chama de "associações irrelevantes"– do gênero "ah, foi isso mesmo o que aconteceu comigo".
São, claro recifes a serem evitados por quem quiser ler um poema "objetivamente", ou pelo menos, no esforço de fazer justiça a um autor. Há também, diz Richards, os preconceitos doutrinários.
Mas entre a crítica literária "científica" e paciente, proposta por Richards, e as reações contemporâneas, impensadas, errôneas que sejam por parte de um jornalista –escritor de rodapés– crítico como eu, há uma diferença. Limitações conjunturais, reações de gosto (e foram muitos os franceses no século 18 que achavam Shakespeare primitivo e imperfeito), influem no julgamento. Por outro lado, é da soma desses erros e acertos conjunturais que resulta a glória ou a desgraça de um autor. Sainte-Beuve errou com Baudelaire. Outros críticos acertaram, e por isso lemos sua obra hoje em dia. Acho que não errei com Manoel de Barros. Se eu fosse um francês no século 18, talvez tivesse errado com relação a Shakespeare. Mas Manoel de Barros não é um Shakespeare, acho eu, a despeito dos esforços de José Geraldo.

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