São Paulo, sábado, 15 de janeiro de 1994
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A mágica URV

ERNANE GALVÊAS

Os economistas aprendem nas faculdades, quando aprendem, que a definição de moeda é uma só: meio de pagamento, instrumento geral de trocas. Aprovada pelo Congresso Nacional e emitida pelo Banco Central, como agente da União, a moeda nacional, assim definida, passa a ter curso legal e forçado. Ninguém pode recusar o seu recebimento.
Ao lado de sua função principal e essencial, a moeda pode desempenhar outras funções complementares, como medida de valor (unidade de conta, denominador comum de valores) e reserva de valor.
A experiência brasileira é muito rica e serve bem para ilustrar essas funções de moeda. Por outro lado, a experiência mundial e a comprovação empírica das estatísticas servem para demonstrar a estreita correlação que existe entre as variações no estoque de moeda e as variações nos preços das mercadorias e dos serviços, não importa o sentido dessa correlação, ou seja, não importa saber se uma alta de preços resulta de uma expansão da quantidade de moeda, como afirmam os economistas tradicionais, ditos "monetaristas", ou vice-versa, como querem alguns economistas da escola estruturalista.
O fato inexorável é que essa relação entre moeda e preços determina o valor da moeda. O valor da moeda é o inverso do índice geral de preços. Assim, por exemplo, se o preço médio de todas as mercadorias sobe 100%, isto é, passa de 100 para 200, o valor da moeda (100/200), cai de 1 para 0,5, ou seja, se reduz à metade, perde 50% do seu valor de compra.
Nem por isso, desvalorizada em 50%, a moeda nacional deixa de ser meio de pagamento legal, de curso forçado. Entretanto, não é difícil entender que nas conjunturas de fortes altas de preços, de inflação galopante, a moeda legal perde suas funções complementares de medida de valor ou de reserva de valor.
Quando a moeda se desvaloriza rapidamente, o governo e a sociedade inventam alguma outra medida, como inúmeros indexadores, ORTN, IGP Ufir etc., que servem para medir, ao mesmo tempo, a alta dos preços (inflação) e a desvalorização da moeda. Os indivíduos e as empresas passam a guardar bens, inclusive ouro, dólar e ações, como reserva de valor, e não moeda nacional, e a medir os seus bens, principalmente os financeiros, em ORTN, TR etc.
Não cabe aqui considerar os diferentes conceitos de moeda como ativo financeiro, incluindo todos os ítens que compõem a carteira de liquidez. Qualquer que seja o conceito de moeda, de M1 a M4, permanece a correlação moeda/preços.
Fica, então, claro, que a moeda é uma coisa e indexadores outra coisa.
Estas resumidas observações de cunho didático servem para compreeendermos um pouco melhor a proposta contida na parte final do Plano de Estabilização apresentado recentemente pelo ministro da Fazenda ao presidente da República.
A julgar pelas informações divulgadas, após alcançar o equilíbrio fiscal no Orçamento da União, o governo criará ou proporá ao Congresso a criação de um novo indexador ("indexador contemporâneo"), de variação diária, intimamente vinculado às variações da taxa de câmbio, a ser elaborado e divulgado pelo Banco Central do Brasil. Até aqui não há maiores implicações, do ponto de vista do sistema brasileiro de indexação.
O índice URV, Unidade Real de Valor, funcionará como medida da inflação e da desvalorização do cruzeiro, como qualquer outro índice oficial. Se o governo aplicar esse índice aos seus impostos, ele funcionará como a Ufir; se aplicar às cadernetas de poupança, substituirá a TR e assim por diante. Se o mercado aprovar a URV e lhe conferir credibilidade, no sentido de que estará medindo corretamente a inflação dos preços, então, certamente, o mercado financeiro poderá adotar a URV em lugar do IGP-M e os agentes econômicos poderão utilizá-lo nos contratos de aluguel, de mútuo e outros. Sem novidades.
O problema maior e mais difícil de entender é a afirmação de que esse índice (medida de valor) vai virar moeda legal, de curso forçado. E mais, que vai ser moeda forte, de poder de compra constante, conversível.
Para início de conversa, é bom deixar claro que esta matéria é da competência do Congresso (Artigo 48, item 14, da Constituição Federal) e, pois, dependerá de lei a ser discutida e aprovada nas duas Câmaras Legislativas. O importante, porém, é imaginar como poderá ser feita essa transformação.
Digamos que o governo fixe o preço da gasolina em 0,5 URV e o salário mínimo em 67 URV e que seu valor indicativo seja igual à taxa de câmbio, ou seja, hoje, CR$ 280,00. O motorista que abastece seu carro vai pagar CR$ 140,00 por um litro de gasolina e o empresário vai pagar salário mínimo de CR$ 18.760,00. Agora, se a taxa de câmbio passar para CR$ 336,00 assim como a URV, ajustando-se a uma inflação de 20%, então, o litro de gasolina expresso em URV será pago por CR$ 168,00 e os empregados de salário mínimo receberão CR$ 22.512,00.
Acabou a inflação? Lógico que não. Se os preços sobem, a inflação, que é a sua tradução, também sobe. Não importa que se diga que em número de URV o salário mínimo fica inalterado, porque na moeda legal, em cruzeiros, ele vai acompanhar a inflação.
Se o Congresso mudar o nome da moeda nacional para URV, o que parece inacretitável, ou real, o que é possível, a correlção entre a moeda corrente, legal, e a inflação vai continuar existindo e na medida em que, por quaisquer causas, os preços subirem,, a nova moeda se desvalorizará. A não ser que o governo possua alguma mágica que não está nos livros de economia.
Uma última hipótese é a da livre conversibilidade cambial , em que o Banco Central se compromete a comprar e vender um dólar, digamos, por um real, como na Argentina. Essa seria uma solução ideal, por várias razões, mas corre o risco de perder-se, em meio ao clima de instabilidade política que certamente será agravada pela campanha eleitoral. Ademais, essa hipótese, denominada erradamente de dolarização, está afastada pelo ministro Fernando Henrique Cardoso.
Então, só resta a mágica.

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