São Paulo, sábado, 15 de janeiro de 1994
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Estoura a revolução que Betinho tanto teme

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Como só hoje se encerra a primeira quinzena do primeiro mês de 1994, considero que ainda tenho tempo de formular minha profecia para o novo ano: a campanha de Betinho contra a fome se alastrará por toda a América Latina. Caso contrário os famintos começarão a montar um arraial de Canudos que se propagará de Chiapas, México, até a Terra do Fogo, no sul do Chile.
Os líderes dessa nova revolução dos esfomeados não serão mais do tipo político e intelectual (o primeiro deles, de grande brilho, foi Lázaro Cárdenas, e o último, de brilho ainda maior, Fidel Castro) e sim muito mais no modelo de Antônio Conselheiro. Está provado que líderes esclarecidos como Cárdenas e Fidel não conseguem sequer consolidar o programa que chegam a pôr em prática, de alimentar e educar o povo para que eventualmente esse povo crie à sua volta um país do tipo europeu, norte-americano. Mal esses líderes se afastam, ou enfraquecem, as célebres classes dominantes latino-americanas reintroduzem o regime escravo de trabalho.
Em números absolutos nunca houve tanta fome na América Latina quanto hoje porque nunca houve tanta gente. O Brasil e o México são dois bons exemplos da explosão demográfica que já levou o mundo a romper a barreira dos 5 bilhões de seres humanos. Como nunca sobra, "en nuestros paises", dinheiro para dar comida e educação à classe servil, ela começa a ficar incômoda, a não se conformar mais com o lugar que sempre lhe coube. No Brasil ela está ficando impossível, como se vê nos presídios, nas favelas, nos bailes funk e nos arrastões de praia.
Quando Betinho, antigo e apaixonado militante político, restringiu seu combate à luta contra a fome, não renegou as reformas de base pelas quais sempre lutou. Apenas constatou que um substancial contingente de famintos passou a fazer parte do Brasil eterno. A fome se agrava no Nordeste e mais aqui ou ali, mas é majestosa em suas proporções, brasílica, federativa. É uma espécie de reserva de mão-de-obra em estado de submissão absoluta. Seus componentes usam a força que têm para a tarefa absorvente de continuarem vivos. Aceitam qualquer trabalho que lhe proponham, em troca de qualquer salário. São esses moradores de um corredor da morte, que vai realmente do Oiapoque ao Chuí, que Betinho trata de alimentar e reanimar, se possível.
Ora, no Brasil, de quase 150 milhões de habitantes, há, segundo Betinho, 32 milhões de pessoas que não têm o que comer. No México, de quase 90 milhões de habitantes, haverá uns 20 milhões de esfomeados absolutos. Se nos pusermos a somar, do norte do México ao sul do Chile, os miseráveis continentais, teremos um arraial de Canudos ou um exército Brancaleone de ninguém botar defeito.
Incerto Adeus
Quando estava saindo, em meados de novembro do ano passado, o acordo do Nafta (North American Free Trade Agreement) que une numa só zona de livre comércio o Canadá, os Estados Unidos e o México, registrei, nesta coluna, que o México estava sacudindo dos ombros o insuportável fardo de ser América Latina. Parte, geograficamente, da América do Norte, dava as costas à América Central e à do Sul, sacudindo um lencinho de aliviado adeus e murmurando: "Bye-bye, Latin America".
Esse alegre adeus ficou de repente meio incerto, prolongado, pois a própria euforia da aprovação do Nafta pelo Congresso dos Estados Unidos parece ter irritado os de Chiapas, que substituíram, nas manchetes da imprensa mexicana e mundial, a sigla Nafta pela revoltosa e pouco eufônica sigla EZLN, Exército Zapatista de Libertação Nacional. Por outras palavras, o "bye-bye Latin America" foi sufocado por esse primeiro brado continental de fome belicosa.
Foi em meados de maio de 1993 que Betinho, que então falava ainda simplesmente na Campanha contra a Fome e não na sua atual Ação da Cidadania, reuniu no espaço desocupado do restaurante Assírio, no plano térreo do Teatro Municipal do Rio, um grupo de intelectuais, jornalistas e artistas. Betinho comandava a reunião ao lado de Chico Buarque. Aliás, nem sei se devo dizer comandava. Seduzia os presentes à reunião, talvez seja o mais correto. Esforçava-se por dar a cada um dos que havia convocado que dele dependia o futuro do movimento. E procurava atiçar naquela assembléia variada as fagulhas de iniciativa que já se manifestavam Brasil afora. Algumas boas iniciativas de teatro, de jornal, de televisão resultaram diretamente daquela pregação alegre e viva de Betinho. Ou engrossaram o já agora caudaloso movimento nacional da Ação da Cidadania, que é a única que pode impedir a formação de exércitos da fome.
Não impediu em Chiapas, que fica longe demais, que só captou o eco da voz do Betinho. Mas nós, no Brasil, não podemos fechar os ouvidos ao brado de revolta dos mexicanos que evocam o nome de Zapata.
Aviso de Érico
Érico Veríssimo viajou pelo México, acompanhado de sua mulher Mafalda e dos amigos Viana Moog e Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Despreocupado e saboroso, seu livro "México", publicado em 1957, merece, agora, mais do que nunca, uma reedição. Bastaria que um prefácio resumisse o que tem ocorrido no México, de então para cá, para que o livro continuasse a nos comunicar o prazer que sentiu o autor ao escrevê-lo.
Érico não percorreu o México como escritor em férias, mirando a paisagem distraído e tomando notas para romances futuros. Fez trabalho de repórter também, entrevistando, num alto plano cultural, José Vasconcelos, autor de "Raça Cósmica", e os muralistas Diego Rivera e Siqueiros, enquanto, nas suas andanças, ia embutindo na narrativa o povão mexicano. No mercado de Cuernavaca, por exemplo, Érico, aguçando o ouvido, se pôs a escutar trechos de cartas ditadas por analfabetos a escrivães profissionais, que datilografavam as missivas em máquinas tão antigas que pareciam anteriores à chegada de Cortez. Érico surpreendeu, bisbilhoteiro, mais de uma frase aqui e ali, como quem cata e colhe flores. Uma delas pegou e transcreveu inteira, no seu rubro tom de amapola: "Si no me contestas me mato, palabra de honor".
O que aqui importa, porém, é que Érico, quando está compondo o balanço final do país que visitou, faz um resumo dramático que nos leva de chofre a Chiapas e a Betinho: "Pode-se dizer que a história do México se tem resumido numa luta pela posse da terra. Como cenário de qualidades pictóricas, poucas paisagens haverá no mundo que se possam igualar à mexicana (...) mas como fonte de alimento, de bem-estar e segurança para seu povo, não será excessiva fantasia comparar a natureza do México com uma esplêndida mulher de porte majestoso mas estéril. E o camponês mexicano ama com silenciosa e obstinada paixão essa madrasta que lhe nega o sustento. (...) É verdade que do seio dessa madre tem jorrado petróleo há já algum tempo, mas só o futuro poderá dizer até que ponto esse leite negro terá contribuído para matar a fome e melhorar as condições de vida das massas. (...) Não creio que seja exagero afirmar que o mexicano, que viveu mal-alimentado nos tempos pré-cortezianos, entrou com fome na era colonial, continuou com fome depois da independência e de certo modo ainda tem fome em nossos dias. Correndo todos os riscos inerentes às simplificações (...) direi que, no México, se a terra tem sede crônica, o povo sofre de fome quase crônica."

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