São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 1994
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Anomalia fetal: justiça

SILVIA PIMENTEL

Anomalia fetal grave: equidade e justiça
Em 3 de novembro último o Poder Judiciário Paulista autorizou interrupção de gravidez de feto anencefálico, a ser realizada por médico, em hospital da rede pública ou privada. Trata-se de decisão inédita em nosso Estado, que vem somar-se à sentença de juiz do Paraná, de 19/12/92. Ambas representam importantes precedentes sobre a matéria, ainda carente de regulamentação legal adequada em nosso país.
Anencefalia consiste em malformação congênita, caracterizada pela falta total ou parcial do encéfalo.
Estamos às vésperas do ano 2000; virada de um século caracterizado pelo ritmo avassalador de sua dinâmica social, em grande parte, advindo das novas tecnologias.
A área de medicina fetal é das mais inovadoras. O conhecimento da anencefalia, antes de um feto ser dado à luz, era impossível há alguns anos. Portanto, impossível ao legislador cuidar desta realidade. Hoje, esta possibilidade cria um impasse jurídico.
Alf Ross, jurista dinamarquês, já afirmava: "O desacordo entre o direito formalizado e as exigências de equidade se faz mais aparente quando tem lugar um desenvolvimento social sem que a legislação vá ajustando suas normas às novas condições."
O Código Penal Brasileiro (1940), não poderia dar conta da problemática em questão, visto àquela época não ser ainda possível detectar-se cientificamente anomalia fetal grave dessa natureza.
Hoje, coloca-se o problema: jurídica, filosófica e moralmente.
Pode o Estado obrigar a uma gestante prosseguir gravidez quando o feto não tem viabilidade de vida pós-nascimento? Pode fundamentar tal decisão com base na inviolabilidade do direito à vida? Não significaria submeter a gestante e mesmo seu par, à tortura e a tratamento desumano e degradante?
Não é difícil, a qualquer um, captar o tormento que significa a uma gestante alimentar/sustentar em seu próprio útero uma vida/não vida.
Decisão judicial que desconsiderasse a situação concreta de qualquer mulher que vivencia a dramática experiência de portar feto anômalo não seria razoável, justa, equânime. Seria decisão absurda, execrável e irracional. Aberração jurídica tão forte quanto a aberrarção que a natureza, por vezes, nos apresenta!
Pelo art. 128 do C.P. não se pune o aborto, apenas, quando praticado por médico para salvar a vida da gestante e na hipótese de estupro. O caso em questão não se encontra explicitamente aí contemplado.
Ao enfrentar tão grave lacuna legal, o Poder Judiciário, paranaense e paulista, demonstrou coragem/ousadia / dignidade. Cumpriu com princípio fundamental do art. 1.º de nossa Constituição: respeitar a "dignidade da pessoa humana", respeitando a dignidade humana das gestantes. Cumpriu com o preceito constitucional do art. 5.º, inciso 1.º, não submetendo à tortura duas jovens, de 23 anos, portadoras de fetos anencefálicos. Aplicou o ordenamento jurídico brasileiro, com equidade, de forma a responder necessidade social emergente. Soube avançar, inovando. Realizou Justiça.

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