São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 1994
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Ashrawi quer ombudsman para palestinos

SÉRGIO MALBERGIER
DA REDAÇÃO

Hanan Ashrawi, 47, teve importante papel no incompleto caminho da paz entre Israel e palestinos. Como porta-voz da delegação palestina nas negociações de paz iniciadas em 1991, ela mostrou um novo rosto para a liderança palestina, até então barbuda e com o uniforme de guerrilha do presidente da OLP (Organização para a Libertação da Palestina), Iasser Arafat.
A elegante Ashrawi ganhou grande espaço na mídia americana e era cotada para assumir a chefia da futura representação palestina nos EUA. Mas em dezembro ela anunciou que estava deixando a delegação palestina para se dedicar à criação de uma comissão que fiscalizará os direitos humanos na futura entidade palestina –"uma tarefa difícil", admite a ex-professora de literatura inglesa na Universidade Bir Zeit (Cisjordânia ocupada).
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Folha - A sra. deixou de ser a porta-voz da delegação palestina para se dedicar à defesa dos direitos humanos na futura entidade palestina.
Hanan Ashrawi - Antes de mais nada, o que eu estou criando é uma comissão independente de direitos humanos que terá três tipos de estruturas de fiscalização. Uma é o ombudsman, outra é uma comissão de direitos humanos e a terceira é um controlador do Estado.
Folha - Essa comissão estará ligada à futura administração ou será independente?
Ashrawi - Será totalmente independente, mas terá uma base legal. O presidente Arafat assinou um decreto que compromete a administração a respeitar a independência e o trabalho da comissão. Teremos o direito de revisar a legislação e também de monitorar as atividades e organismos administrativos, publicar um relatório anual e outros relatórios e ter acesso aos documentos e escritórios oficiais.
Folha - E como a liderança da OLP vê o seu trabalho agora?
Ashrawi - A liderança está respeitando o nosso direito de agir. Estamos formando nossa diretoria e esperamos começar a trabalhar efetivamente no mês que vem.
Folha - E que posto a sra. pretende ocupar nessa organização? Ombudsman?
Ashrawi - (Risos) A mesa de comissários, assim que se reunir, elegerá o comissário-geral.
Folha - Como os direitos humanos serão protegidos na futura entidade palestina? A sra. teme abusos?
Ashrawi - Não é uma questão de medo, é uma questão de necessidade e de institucionalizar e corporificar os princípios nos quais acreditamos. Não estamos trabalhando apenas com os direitos humanos, mas também para proteger as liberdades básicas, para garantir que o sistema democrático prevalecerá e que haverá o reinado da lei, com um sistema legal justo. É claro que passaremos por um período de mudanças até lá. Será difícil, será doloroso, mas esperamos ter instituições que colocarão (a entidade palestina) no caminho certo. Este é o modo correto.
Folha - O grupo de direitos humanos israelense B'Tselem (independente) divulgou um relatório recente culpando a liderança palestina por não fazer o suficiente para impedir as centenas de assassinatos dos chamados "colaboradores" palestinos. O que a sra. acha que deve ser feito a respeito?
Ashrawi - Acho que há dois aspectos aqui. Antes de mais nada há a ocupação israelense, que cria esse tipo de fenômeno doentio e doloroso da colaboração. Acho que Israel deveria parar de recrutar colaboradores, pessoas do submundo e criminosos, dar a eles armas, colocá-los no meio de comunidades pacíficas e fazê-los trabalhar para eles. Este é um aspecto. O outro aspecto é entre nós, palestinos. A violência e certo tipo de "justiça" não devem ser aceitos. Devemos ter um processo adequado e um sistema legal que cuide de qualquer violação da lei. E as pessoas, é claro, devem ser consideradas inocentes até que se prove o contrário. É muito triste e injusto que pessoas sejam executadas por "ofensas morais" e sejam taxadas de "colaboradores".
Folha - A sra. acha que as mulheres terão os seus direitos respeitados na futura administração?
Ashrawi - Bem, não acontecerá automaticamente, ou por si só. Nós temos que trabalhar e estamos trabalhando para ter os nossos direitos reconhecidos e para impedir qualquer tipo de discriminação sexual. Temos de nos certificar de que as leis em si não sejam discriminatórias. Temos que construir instituições de mulheres e trabalhar com organizações de mulheres para criar direitos, também. E devemos nos intrometer em todos os âmbitos decisórios e na administração para criar um espaço para as mulheres. É uma luta e, embora tenhamos alguns aliados entre os homens, as mulheres tendem a ser as primeiras vítimas em qualquer transformação ou qualquer tipo de compromisso.
Em relação à administração hoje, eu acho que já há gente suficiente competindo por poder, por posição, por autoridade –e deve ser uma luta dominada por homens. Acho que as mulheres estão lidando com os assuntos de uma maneira mais correta, ao invés de lutarem para ganhar poder ou reconhecimento.
Folha - A sra. tem contato com o Hamas? Há temor em relação ao modo como os fundamentalistas muçulmanos lidam com os direitos humanos, e especialmente com os direitos da mulher?
Ashrawi - Não tive contato com o Hamas. Houve alguns contatos e encontros políticos. Mas em relação aos direitos da mulher, não.
Folha - A sra. acha que o plano de paz está em perigo devido ao adiamento da retirada israelense de Gaza e Jericó?
Ashrawi - O processo de paz não se sustenta por si só. Ele precisa de compromisso, seriedade de intenções, boa-fé e implementação apropriada. Se perde sua dinâmica ou credibilidade entre as pessoas, estará em perigo. Mas eu acho que os dois lados estão compromissados e querem que ele tenha sucesso, mas cada lado tem suas próprias posições e prioridades.
Folha - Como está o clima nos territórios ocupados? Os palestinos estão ficando frustrados com o processo de paz?
Ashrawi - Há um tremendo sentimento de frustração e falta de confiança. Ele está crescendo, e também a hostilidade. Há uma atitude generalizada do tipo "vamos esperar para ver", "não acreditamos nos israelenses". Mas a opinião pública pode mudar, dependendo dos acontecimentos.
Folha - A sra. acha que Arafat está fazendo um bom trabalho na liderança da OLP e do processo de paz?
Ashrawi - Acho que ele está sob muita pressão; há muitos fatores que ele deve pesar, não é uma situação fácil. Há uma necessidade, claro, de reforma interna (na OLP), de novas estruturas, nova mentalidade, nova forma de trabalhar. É uma preocupação interna palestina que já foi expressa e há várias pessoas trabalhando pela democratização, para melhorar a ação palestina.
Folha - A sra. acha que Arafat é receptivo a essas críticas?
Ashrawi - Bem, ele é receptivo de algumas formas. O teste verdadeiro será na implementação (das mudanças). Não é uma questão de indivíduos, de uma pessoa. É uma questão de sistema, de atitude, de princípios que devem ser trabalhados de uma forma estrutural e procedural. Eu acho que temos que mudar nestes aspectos para podermos lidar democraticamente com os desafios da nova fase.
Folha - A sra. está confiante de que um futuro Estado palestino será democrático?
Ashrawi - Não ocorrerá por si. Nós temos que trabalhar nisso para torná-lo democrático, aceitando o pluralismo, não discriminando, respeitando os direitos humanos e as liberdades civis. É algo que devemos trabalhar para atingir. Se não toparmos o desafio, correremos o risco de não ter um Estado democrático. Mas acho que há compromisso suficiente e atenção suficiente do povo e da liderança palestina para estabelecer os organismos de um Estado democrático.

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