São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 1994
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O sino do arpoador

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Pai e amigo de duas setters irlandesas, frequento a última praia urbana do Rio em que são permitidos desvios de comportamento, como jogar frescobol, praticar surfe e levar animais ao banho de mar. Talvez por isso a praia tenha o respeitável nome do diabo –praia do Diabo– uma pequena enseada entre Copacabana e o Arpoador. Não sei a razão do nome. O mundo ou é de Deus ou do diabo. Aquele trecho do litoral é do diabo e basta.
Ao meio-dia, ouço o sino que toca na Igreja da Ressureição, no final do Posto Seis. Não gosto da igreja, parece uma agência bancária. Mas tem o sino. O poeta Drummond, que morava ali perto, na rua Conselheiro Lafaiete, também gostava daquele sino. Chegou a escrever ao vigário local, que hoje é bispo em Piracicaba, Dom Eduardo Koiak. Por sinal, entramos no mesmo dia no mesmo seminário. Foram anos de vida em comum até que, ao chegar à teologia, ele foi se doutorar em Roma e eu vim quebrar a cara no mundo –na parte que toca ao diabo.
Foi dele a idéia de compensar a modernidade do novo templo com um sino que desencavou no interior de Minas, um daqueles sinos antigos, manobrados por cordas, de um bronze casto e distante, que fica ressoando no ar como a asa de um pássaro invisível mas próximo.
Em Roma tem sinos assim, nas aldeias de Portugal também, na Espanha não, os sinos da Espanha são diferentes, um pouco sinistros, há que se entender os sinos e há de se ouvir as estrelas como no soneto de Bilac. O poeta Drummond comovia-se e agradeceu ao padre ter trazido aquele sino fora do tempo, fora do espaço mais adequado a tangas e arrastões. Mas não penso em Drummond, nem mesmo em Koiak quando ouço o sino. Penso em nada, simplesmente. Fico boiando no ar, como o próprio som do bronze, absurda trilha sonora, fuga e assombração.
Antigamente, os sinos marcavam nascimentos e mortes, incêndios e festas. Passaram de moda mas continuam tocando, ao menos ali, no Arpoador, com o apelo que me persegue e convoca, que ainda me chama. Um dia, tomo coragem e vou.

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