São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 1994
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–Qual a sua opinião sobre a Alemanha hoje? O que os seus anjos vêem na Berlim de 1993 em comparação à de 1987?

GIANNI GANOVA

–Vêem um país descontente e infeliz. Em 89, com a queda do muro, parecíamos viver o início de um novo mundo. Ser alemão podia assumir um novo significado. A reunificação abria novas chances de redefinir o que éramos. Visualizamos o processo de forma extremamente eufórica e rápida.
–A força econômica alemã parecia ser capaz de tudo.
–Provavelmente tínhamos a força econômica para recomeçar, mas faltava a força moral. O efeito desta falta de força moral se nota claramente hoje: os alemães da parte oriental são o povo mais frustrado, rancoroso e infeliz que conheço. E a insatisfação deles está se difundindo na parte ocidental.
–Ninguém sabe como anda o país...
–Um culpa o outro. "São suas idéias de Alemanha que estão erradas", dizem os do lado ocidental. E os do lado oriental devolvem a acusação. Sinto uma atmosfera de animosidade incrível. E uma desorientação paralisante. Os mais jovens vivem como se estivessem numa região oca, num país sem definição. A Alemanha é uma espécie de terra de ninguém. Sem conhecimento da própria história. Quem está mal procura alguma pessoa próxima para derramar seu descontentamento. E os dias se arrastem sem muita dignidade.
–Mas no seu filme há palavras de esperança, como as pronunciadas por Mikhail Gorbatchov e captadas por um anjo.
–O discurso de Gorbatchov é um pouco o prólogo do filme. Quando soube que o ex-líder da antiga União Soviética aceitou interpretar a si mesmo em "Tão Longe, Tão Perto" preparei algumas páginas com citações de seus livros. Jamais ousaria escrever o que ele deveria dizer. Mas Gorbatchov nem olhou. Conversou comigo sobre o espírito do filme e improvisou um discurso onde citava escritores russos e apresentava sua visão das coisas. É um homem fantástico, com uma cultura e sensibilidade rara nos dias atuais.
–Ele é uma espécie de um anjo que desceu na terra?
–Em parte sim. Os outros personagens políticos que conheci parecem mais demônios, enquanto ele me dá a impressão de ter a estatura de um arcanjo.
–Uma outra presença marcante no filme é a do compositor Lou Reed. Até o anjo o observa com olhos extasiados durante o concerto. Como nasceu sua colaboração com Reed?
–Reed escreveu uma canção fantástica para "Até o Fim do Mundo", chamada "What's Good". Enquanto trabalhava em "Tão Longe, Tão Perto", pedi que escrevesse uma nova composição. Descrevi a história do anjo que se torna um barbudão e sugeri que trabalhasse sobre essa idéia. Na manhã seguinte me telefonou e disse que não tinha dormido e que a canção já estava pronta. Gostei tanto que decidi colocar no roteiro uma sequência ambientada em um concerto de Lou Reed e fazer da canção o tema musical do filme.
–Você declarou ter sido salvo pelo rock. Ainda pensa isso?
–Não, hoje me sinto salvo por outras coisas. Mas foi verdade há 20 anos. O rock foi uma "revelação", me deu acesso à minha criatividade adormecida. Até hoje escuto muito rock, principalmente no carro. Hoje, me sinto salvo pela palavra e pela literatura, mais do que pela música.
–O anjo interpretado por Bruno Ganz faz o papel de um pizzaiolo italiano. Por que a escolha desta cena?
–Queria que fizesse algo bem artesanal. Deveria proporcionar prazer com as mãos e trabalhar para os outros.
–Você gosta de cozinhar?
–Não sou capaz, mas admiro muito os que são. E adoro a cozinha italiana. É cheia de vida, de alegria. Queria que o anjo humanizado transmitisse generosidade e alegria de viver. Assim, decidi fazê-lo preparar a pizza.
–O outro anjo destrói vídeos pornográficos. Por quê? Qual a diferença entre o voyeurismo da pornografia e o de cineastas como Alfred Hitchcock?
–Depende de diversas áreas da vida onde se aplica o voyeurismo. As imagens sempre comeram pedacinhos de nossa vida. Onde havia tabus, as imagens os infringiram. Devoraram. Com a pornografia, as imagens penetram nos ângulos mais ocultos de nossa vida e o fazem com uma brutalidade e ferocidade insuportável. As imagens pornográficas são contagiosas. Basta ligar a TV e brincar com o controle remoto para, mesmo sem querer, se contaminar.
–Então a única solução é a cegueira...
–Pelo contrário. É preciso abrir os olhos. Mas sobre a realidade, não sobre imagens que as reelaboram. É necessário reencontrar a pureza do olhar, reaprender a ver. Talvez eliminando um pouco a TV do horizonte de nossa vida.

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