São Paulo, segunda-feira, 24 de janeiro de 1994
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Gravidez tardia tem debate ético machista

Discussão não pode se basear na norma masculina

LUCIA CRISTINA DE BARROS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A face do machismo se mascara de formas múltiplas, ficando às vezes difícil identificá-la. A série de recentes artigos sobre os casos de mulheres que fizeram tratamentos de fertilização com o médico italiano Severino Antinori para engravidar após a menopausa revela esta dificuldade.
Em artigo neste jornal na segunda-feira, 17 de janeiro passado, o professor José Aristodemo Pinotti considerou a polêmica suscitada pela gravidez assistida de mulheres com idade superior a 45 ou 50 anos como uma demonstração do machismo da sociedade contemporânea –que, ao mesmo tempo em que aplaude a virilidade de homens que com até 80 anos de idade ainda têm filhos, transforma a gravidez depois da menopausa em escândalo mundial.
O problema, porém, é que ao tentar apontar para o machismo na sociedade e combatê-lo, o doutor Pinotti desenvolveu uma linha de raciocínio que se baseou exatamente em conceitos machistas.
Para ele, a "menopausa é uma injustiça que a natureza faz com as mulheres". Assim, ele afirma que uma vez que hoje a medicina tem condições de corrigir essa injustiça, "devolvendo às mulheres a plenitude da vida após os 50 anos de idade, como se devolve a um míope o uso total de sua visão", então a medicina deve fazê-lo.
O primeiro problema na posição do doutor Pinotti é sua consideração de que as mulheres que não mais ovulam, não mais possuem a "plenitude da vida". Esse racionínio só se justifica por uma definição de mulher como mãe. Afinal, é apenas esta capacidade física de ser mãe que a menopausa encerra para a mulher. Para isto, depois de parar de ovular, a mulher continua a ser exatamente o que era antes: um ser feminino inteiro, capaz e sexual.
Eis uma das máscaras do machismo: engrandecer a maternidade através da diminuição da mulher. Quando ser mulher é definido como ser mãe, a perda dessa capacidade significa a perda da própria identidade como ser. As mulheres que já passaram pela menopausa sobra então o nada. Ou a busca de um conserto.
Esta noção de "corrigir" a natureza no que tange à mulher tem relação com o segundo problema na posição defendida pelo doutor Pinotti, e que se revela quando ele compara a menopausa, um processo natural nas mulheres, à miopia, um defeito da visão. Ele julga a natureza feminina e conclui que é uma natureza defeituosa, "injusta" e passível de correção.
Tal argumentação se baseia claramente numa comparação mais ampla: a da mulher em relação ao homem. Como os homens mantêm sua fertilidade através da vida, e como as mulheres não, a natureza feminina é considerada errada. É um velho conceito. Historicamente a mulher tem sido identificada como o "outro" em relação ao homem –que se autodefine a "norma".
Esta é outra máscara do machismo: parecer defender a igualdade entre os sexos quando na verdade define a mulher como "erro" perante a "norma" masculina.
Não há dúvida de que os avanços da medicina frequentemente apresentam aos seres humanos complexas questões éticas, que demandam uma ampla discussão social. A gravidez pós-menopausa se enquadra nesta categoria.
Porém, para que nós nos posicionemos tanto a favor como contra a técnica, é preciso que sejam bem definidos os parâmetros em que a argumentação vai se basear. A precisão é fundamental porque o resultado da discussão terá implicações para todos.

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