São Paulo, domingo, 2 de outubro de 1994
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O que fazer, Leonel?

GIANFRANCESCO GUARNIERI

Governador uma pinóia! Não sou mais nada! Só um derrotado que já está se acostumou a isso; agora, não passo de um peão
Através da porta entreaberta que conduz à sacada, insinuam-se o luar e os sons de uma festa não muito distante: música, gritos, risadas. De quando em quando, o espoucar de fogos de artifício que iluminam a noite com suas chispas coloridas, desvendando momentaneamente os poucos móveis pesados e antigos que ocupam o aposento. Distantes mas audíveis, os brados em uníssono que vêm da festa:
Coro - (em off)"É quente! É quente! Nosso novo presidente!"
Leonel, bruscamente, ergue o tronco. Sacode a cabeça e fica sentado na cama, aturdido. Presta atenção aos gritos ritmados. Irritado, atira o travesseiro no chão. Levanta-se e, tapando as orelhas com as mãos, anda agitado pelo quarto. Abre a gaveta do criado-mudo e procura algo.
Leonel - (Chamando aos berros) Gabriel!... Gabriel!... (Resmunga para si mesmo) Onde será que eu meti essa porcaria?... Tenho certeza que estava aqui, na gavetinha, duas caixas...
Vai procurar na escrivaninha. Torna a chamar aos berros:
Gabriel!... Acorda, desgraçado, incompetente!... (Volta a resmungar) É claro que foi ele! Quando resolve arrumar as coisas, não se encontra mais nada! É uma catástrofe!... (Berra) Gabriel!
Apalpa o camisolão branco que veste em lugar do pijama, como a procurar algum bolso inexistente.
A festa, ao longe, continua animadíssima com o coro de "É quente! É quente! Nosso novo presidente!". No auge da irritação, Leonel corre até a porta que dá para a sacada e tranca-a. Certificando-se que está bem fechada, chama novamente:
Leonel - (Quase histérico) Gabriel!... (Nota que os ruídos da festa diminuíram) Ah! Um pouco de paz! Maldita zorra! (Imitando cômica e desdenhosamente o coro dos festeiros, dedos indicadores espetando o ar) "É quentchi! É quentchi! Nosso novo presidentchi!". Maravilha! Um mote tão profundo, inteligente! (Dando um murro na mesa) Áulicos! Fariseus! Adesistas!... Filhos da puta! (Encolhe-se todo, como pego em flagrante. Risadinha.) Cuidado com as parabólicas, Leonel!
Batidas na porta que leva ao interior da casa.
Finalmente! (Grita) Entra, energúmeno!
Abre-se a porta e vemos o "factotum" Gabriel, vastos bigodes grisalhos, chapelão, bombachas, botas, poncho, lenço vermelho atado ao pescoço. Impecável gaúcho em trajes tradicionais. Leonel olha surpreso para o velho capataz que se mantém sério, perfilado à sua frente.
Leonel - Barbaridade, Gabi! Que fazes assim todo ajaezado a essa altura da madrugada? Pensei que dormias!
Gabriel - (Sempre muito sério) De fato, dormia, Peço desculpas. O senhor garantiu que ias chegar ontem, bem cedo. Não apareceu e nem mandou notícia. Fiquei a postos, esperando. Tudo preparado para recebê-lo com todo o calor e as tradições da terra como bem merece. Eu estava feliz mas o senhor não aparecia. Aí eu fiquei ansioso, e nada do senhor aparecer. Aí, então, eu entrei em pânico. Telefonei pra meio mundo e não encontrei nem um desgraçado pra me dizer o que tinha acontecido com o senhor. Só não desembestei por aí feito louco porque eu lhe conheço bem e sei quanto é teimoso e egoísta! Só faz o que quer, como quer e quando quer, sem dar a mínima pelota pra quem se preocupa com o senhor, lhe tem muita estima e... com todo o respeito..., ama o senhor. Estava nessa aflição, quando, ainda há pouco, vencido pelo vinho, cachaça e muito sono, apaguei, assim, desse jeito, ajaezado como o senhor diz. Acordei agora com seus berros. É isso aí – PT. PT não, desculpe, quis dizer "ponto".
Leonel - (Emocionado) Meu velho bastardo! Dá cá um abraço!
Apesar da idade, Gabriel praticamente salta sobre Leonel para abraçá-lo, ambos muito comovidos.
Gabriel - Meu caudilho! (Chora)
Leonel - Meu irmão! (Também chora)
Gabriel - Meu pai!
Leonel - (Controlando-se) Chega! Pai dos pobres só houve um: Getúlio Vargas! Eh! Respira fundo, Gabi. Afinal, estou aqui, não aconteceu nada comigo, nada está perdido. Meu lema sempre foi: persistir, recomeçar com renovada firmeza! E assim vai ser, não conheço o verbo "desistir". Desculpe, meu velho, se não avisei que ia me atrasar; é que eu precisava mesmo ficar solto por aí, sozinho, refletindo, perguntando a mim mesmo, como fez Lênin: "Que fazer?"
Gabriel - Será indiscrição perguntar por onde andou?
Leonel - Será!
Gabriel - (Perfila-se, solícito, subalterno) Às suas ordens, Governador!
Leonel - Governador uma pinóia! Não sou mais nada! Só um candidato derrotado que já está se acostumou a isso. Agora, não passo de um peão.
Gabriel - Quem é rei nunca perde a majestade!
Leonel - É... Mas já que foi proclamada a República... (Meneia a cabeça e sorri com ar de quem "sabe das coisas") Vai, vai, vai dormir, Gabi, vai!
(Gabriel, militarmente, bate os saltos das botas e dá meia volta.)
Leonel - Ah, não, espera um pouco; ainda não disse porque me "atrevi" a te perturbar com meus berros. (Num repente, gritando) Onde, diabos, o senhor enfiou minha caixinhas de "Lexotan"!?
Gabriel - "Lexotan"?
Leonel - O senhor sabe muito bem! Meus Lexotans, remédios, calmantes, drogas, que sempre deixo no meu criado-mudo para qualquer eventualidade. Deixei duas caixinhas guardadas ali, na gavetinha! (Diante do ar de dúvida do outro) Tenho absoluta certeza, não sou nenhum louco!
Gabriel - Acredito, senhor. Na verdade, arrumei o quarto todo mas, por incrível que pareça, não encontrei nenhuma droga.
Leonel - Não me provoques, Gabriel! Conheço muito bem esta tua cara de sonso. Não me venhas com insinuações que eu te encho de porrada! Onde enfiaste meus Lexotans?!
Gabriel - Pois já disse que não vi Lexotan nenhum!
Leonel - Não admito que levantes a voz pra mim!
Gabriel - E quem é que levantou a voz? Pô, meu caudilho, estás com os nervos à flor da pele! Maneira, breca! Olha só como está: todo roxo, apoplético. Assim, vai acabar estourando! Depois, tem um treco aí e nós, hein? E nós? O que é que a gente faz?
Leonel - Cala essa boca!
Gabriel - Já não é nenhuma criança, tem de cuidar da saúde...
Leonel - Gabriel!!
Gabriel - Está bem, está bom, não falo mais nada. Mas esquentar a cabeça por qualquer coisinha, faz mal. De quente já basta o nosso novo presidente. (Diante do olhar furibundo do outro) Brincadeira, piadinha, um simples chiste!... Vou procurar o Lexotan; aposto que o senhor deixou em algum bolso por aí... (Resmunga) Eu é que escondo as coisas, é...!
Leonel - E me vê também uma aspirina que estou estourando de dor de cabeça. (Senta-se na cama, cobrindo o rosto com as mãos, de costas para a porta da sacada.)
Gabriel procura as roupas de Leonel espalhadas por ali. Remexe nos bolsos procurando o remédio. Enquanto isso, continua resmungando consigo mesmo:
Gabriel - Miúra velho, visionário! Tudo isso pra quê? Agora fica aí se martirizando! Mas quem é que se importa. Recomeçou a dor de cabeça? Pois não vai passar nunca se não aquietar o rabo! Mula! Empacou no tempo. Acabou, meu caudilho! Chegou a hora da rede na varanda, mantinha nas pernas, olho esbugalhado vendo a boiada passar. E ainda se dê por feliz pela vida lhe deixar algum motivo de orgulho!...
Leonel - O que tanto resmungas, Gabi?! Meus remédios, porra!
Gabriel - Já vai, só mais um pouco de paciência... (Volta a resmungar consigo mesmo). Olha só como ele está! Uma pilha!... Nunca ligou pra ninguém! Se tivesse me ouvido, evitava mais essa! Podia, fácil, fácil se eleger deputado federal, ficar no bem bom, sem nem aparecer por Brasília... E continuava sendo "V. Excia". (Achando o Lexotan em um dos bolsos de uma jaqueta, grita) Achei! Não disse que estava no seu bolso? Pois é, está aqui na sua jaqueta!
Leonel - Esse aí é o Lexotan da jaqueta! Quero saber onde enfiaste os Lexotans da gavetinha!... Esclerosado! Tu me esgotas a paciência, sabes?! Dá cá, dá cá esse mesmo, anda!
Gabriel - (Exagerando a pressa, corre para lhe entregar o remédio) Pronto, chefe!
Leonel - E queres que eu engula a seco?
Gabriel - (Procurando acalmar o patrão) Bah! Que cabeça a minha! Tem toda a razão, chefinho, estou ficando esclerosado! (Sempre exagerando a pressa, corre para o freezer onde pega uma garrafa pequena de água mineral e um copo) Se eu fosse o senhor, tomava logo dois comprimidos; está me parecendo um pouco tenso. Dois comprimidos, uma boa noite de sono, devidamente "lexotado" e pronto! De manhã vai estar novo em folha; vai poder receber os correligionários...
Leonel - (Pegando o copo, com água pela metade, e o remédio) Que correligionários?
Gabriel - (Tomando, pelo gargalo, o resto de água da garrafa) Os seus, ora! Ontem, ficaram aqui esperando, quase o dia todo. Uma tropa deles, muito alvoroçados. Estavam querendo uma orientação.
Leonel - Mas como souberam que eu vinha pra cá?
Gabriel - Bem, o senhor não aparecia, eu tinha de perguntar pra alguém!...
Leonel - Gabi, Gabi! Como és estabanado! Então não sabes que este é meu refúgio, minha toca, minha humilde lapa onde me recolho quando quero ficar sozinho, sem ver a cara de ninguém, muito menos de correligionários! Deixem-me hibernar! Por Deus, sou um urso ferido! Preciso hibernar!
Gabriel - Hiberne, hiberne à vontade, claro! Então um líder como o senhor não vai ter o direito de hibernar?! Deixe comigo, assim que eles vierem amanhã, eu despacho: Sinto muito, senhores, mas "seu" Leonel Brizola não se encontra. Está hibernando em algum ignorado recanto do país!
Leonel - (Atirando um travesseiro no outro, irônico) És tão engraçado, Gabriel! Morro de rir!... (Estendendo o copo, ríspido) Bota mais água aqui!
Gabriel - (Mostrando a garrafa vazia) Bebi toda.
Leonel - (Apontando o revólver que estava sob o travesseiro que ele jogou em Gabi) Agora, eu te mato!
Gabriel - (Caindo de joelhos, comicamente, mãos ao alto) Não, não! Pelo amor de Deus! Se me matar, na próxima eleição, vai ter menos um voto, e aí vai sumir de vez nas pesquisas!
Leonel - (Rindo) Só tu mesmo, Gabi, para me fazer rir com essa dor de cabeça que eu estou!
Gabriel - (Vai ao freezer pegar mais uma garrafa de água) "Ridendo castigat dolores"! E não tem dor que uma boa massagem não dê jeito... (Voltando, serve água a Leonel. Senta-se na cama, atrás do chefe, e começa a massagear-lhe as costas e a nuca.) Relax, my boss, relax!...
Leonel - (Olhos semicerrados) Poliglota de fancaria...! Imperialista!...
Sem que eles percebessem, a porta da sacada foi se abrindo lentamente, descortinando o céu noturno iluminado, de quando em quando, pelos fogos de artifício que cintilam agora sem ruído. Ao longe os sons de música suave.
Leonel - (Fruindo a massagem). Isso, Gabi, isso!... Calma!... Pega mais de leve que não sou gado!... Assim, isso, assim!... Aí, aí, bem na nuca! Boa, Gabi!... Gabi!... Gabriela!... Ah!... Marília Gabriela! A grande Gabi! Oásis bendito no corpo-a-corpo cruel dessa campanha! Quanta distinção e elegância! A firmeza suave com que ela coordenava os debates! Tão digna, angelical! Um verdadeiro arcanjo pairando acima de tudo, fazendo com que, todos ali, nos sentíssemos uma pobre gente apertada nos ternos e gravatas da própria pequenez!
Gabriel - Bah!... Devagar com o andor, chefe; está ficando todo duro de novo!... Calma, tranquilidade!... A loirona pode ser muito boa mas pra anjo falta um pouco, não é?

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