São Paulo, domingo, 2 de outubro de 1994
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A evolução dos mapas

MANUEL DA COSTA PINTO
DA REDAÇÃO

As obras sobre a evolução da cartografia tendem a ser uma apologia das conquistas científicas da era moderna, reservando aos mapas antigos e medievais o papel de lendas descartáveis.
É essa prática analítica, que projeta no passado as utopias da ciência contemporânea, que o pesquisador Peter Whitfield analisa nas páginas de "The Image of the World" ("A Imagem do Mundo", editado por The British Library).
O livro poderia ser folheado apenas por seu apelo iconográfico. Ex-diretor do Stanfords International Map Centre de Londres e atualmente proprietário de uma editora de fac-símiles de mapas, Whithfield reproduziu um rico acervo cartográfico que remonta à Antiguidade e chega até os modernos registros de satélites.
Entretanto, o texto de Whitfield tem autonomia em relação às imagens, propondo algumas interpretações de sua linguagem que se chocam com a idéia da história da ciência como um progressivo afastamento de contingências culturais.
Whitfield parte do pressuposto –comum em ciências humanas como a antropologia– de que os discursos artístico, filosófico, religioso e mesmo científico refletem o sistema de crenças de sua época, revelando a forma como as sociedades concebem o mundo.
Sua perspectiva teórica é muito próxima, por exemplo, de um autor como Thomas Kuhn, que em "A Estrutura das Revoluções Científicas" (Perspectiva) atribui as mudanças dos paradigmas científicos a um amplo contexto de práticas discursivas e percepções culturais da realidade.
Nesse sentido, o astrônomo grego Claudio Ptolomeu será a personagem chave do livro de Whitfield, permitindo um confronto entre duas eras distintas e desvelando as razões não científicas de sua apropriação pelos cartógrafos do Renascimento.
Ptolomeu, mais conhecido como defensor da teoria geocêntrica, viveu aproximadamente entre os anos 90 e 168 e contrariou a crença de importantes geógrafos da época de que a Terra seria uma ilha cercada por mares.
Além disso, ele esboçou pela primeira vez a técnica de transposição da forma esférica do planeta para um desenho plano, através de meridianos e paralelos.
Esquecido durante a Idade Média, Ptolomeu seria recuperado nos séculos 15 e 16. Um bom exemplo disso é a carta geográfica de Martin Waldseemller (1507), em que ele aparece ao lado do navegador Américo Vespúcio.
O ressurgimento de Ptolomeu, diz Whitfield, é um dos paradoxos que mostram as razões não científicas das mudanças do pensamento científico.
Afinal, quando ele era citado pelos cartógrafos renascentistas, suas descrições já tinham se tornado anacrônicas face às inovações trazidas pelos descobrimentos.
O motivo, segundo Whitfield, é a inexistência, no Renascimento, de um pensamento científico que sistematizasse os resultados empíricos das navegações.
Assim, sua conclusão é que o retorno do Renascimento em direção à Grécia foi uma opção artística, cujo componente principal era a reação aos valores medievais.
Durante a Idade Média, observa Whitfield, o `formato T-O' dos mapas (leia texto abaixo) e seu conteúdo faziam referências óbvias às crenças da Bíblia.
A cartografia medieval estava preocupada, enfim, em enunciar as cidades ao sabor da conveniência eclesiástica, ignorando sua localização precisa e as mudanças de nomes ao longo do tempo.
Dessa maneira, conhecimentos topográficos realmente existentes eram desprezados em favor da representação de motivos cosmológicos –como o pecado original e o apocalipse.
A contrapartida renascentista destas motivações não científicas seria o culto da racionalidade. Devido a suas distorções, as coordenadas dos mapas da Renascença tinham pouca utilidade para os navegadores. Sua função real, diz Whitfield, era fornecer uma visão global, geometrizada e, portanto, "antropomórfica" do planeta.
No panorama traçado por Whitfield ao longo de inúmeros exemplos, portanto, não existem saltos qualitativos entre as ciências de diferentes períodos, mas mudanças de objetos de representação.
Obviamente, "The Image of the World" não desconsidera as consequências epistemológicas destas rupturas e a crescente capacidade da cartografia em ampliar os limites do real.
Entretanto, a preocupação de Whitfield é restaurar cada saber ao imaginário de sua época, apontando suas utopias e mitos. Isso acontece com os mapas barrocos, em sua representação da monarquia absoluta, ou com a cartografia "imperialista" dos colonizadores ingleses. Também acontece, por exemplo, com as mais sofisticadas técnicas de mapeamento aéreo, que criam a linguagem cifrada dos satélites.
O próprio título do livro, enfim, é uma referência a essa opção teórica. Afinal, "Imago Mundi" era uma enciclopédia medieval que completava os "mappae mundi" com informações históricas e mitológicas –da mesma forma como "The Image of the World" descobre, sob a superfície dos mapas, uma antropologia cartográfica.
"The Image of the World" pode ser encomendado à livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, loja 153, São Paulo, tel. 011 285-4033)

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