São Paulo, domingo, 2 de outubro de 1994
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Querer não é poder

A economia consiste num esforço permanente para adequar desejos e possibilidades. O mais difícil, entretanto, talvez não seja tanto identificar os limites para a satisfação de cada desejo, mas conseguir ou mesmo saber escolher entre sonhos alternativos.
Quando se trata de economia, todos sonham com a estabilidade dos preços, com a distribuição de renda e com o desenvolvimento econômico. Cada alternativa é não apenas factível como legítima em termos sociais, políticos e éticos. Mas dificilmente os três sonhos podem tornar-se realidade ao mesmo tempo.
O Plano Real coloca como prioridade indiscutível a conquista da estabilidade de preços. A tremenda façanha eleitoral que se desenha em seguida ao plano apenas confirma o quão legítima é essa escolha.
Ocorre que três meses depois do Dia D torna-se claro que a estabilidade traz como efeitos colaterais um inegável processo distributivo –já que os mais pobres foram libertados do imposto inflacionário– e uma forte expectativa de crescimento econômico. A pergunta é simples: podem os três objetivos sobrepor-se impunemente? Será afinal possível tornar tão rápida a transição ao paraíso?
Há poucos anos, na sequência de outro plano que afinal revelou-se fugaz, houve quem acreditasse ser o Brasil capaz de subitamente exibir inflação suíça com crescimento japonês. A ilusão durou pouco.
A eliminação abrupta da superinflação traz sem dúvida um imenso alívio, mas é perigoso recair no vício ciclotímico que rapidmente traduz o alívio numa euforia insustentável. Pois não basta derrubar a inflação, é preciso mantê-la baixa. E aí os desafios são enormes.
Para que a inflação não volte com força, para que o real não repita a trajetória de outras moedas "novas", é preciso evitar excessos. A começar pelo excesso de moeda em circulação, já que inflação é sinônimo de dinheiro demais correndo atrás de uma quantidade limitada de bens e serviços.
Há várias fontes de expansão do volume de reais na economia. Se a economia brasileira exporta mais do que importa, os dólares do superávit convertem-se em reais. O esforço para gerar megassuperávits no comércio internacional dos últimos anos pode portanto traduzir-se, se outras medidas não forem adotadas, em desatino.
O mesmo eventualmente ocorre com a entrada de capitais. Assim como no superávit comercial, tais recursos, se convertidos em reais demais, podem atiçar a inflação.
O déficit público é outra fonte de expansão. Se o governo gasta mais do que arrecada e, principalmente, se cobre esse buraco emitindo moeda, surge igualmente uma pressão inflacionária autônoma.
A receita, portanto, parece simples. Para assegurar que a estabilização se consolide é preciso pelo menos compatibilizar os fluxos monetários associados ao comércio exterior, à entrada de capitais e à contenção do déficit público.
Mas o saldo exportador gera empregos e impulsiona o crescimento. A entrada de capitais também estimula os mercados. E os gastos públicos estão sempre amarrados tanto a necessidades sociais e produtivas quanto a clientelas acostumadas à proteção estatal.
É portanto evidente que enfrentar esses ajustes pode ser em muitos casos praticamente sinônimo de criar antipatias. Conter a expansão da oferta de moeda, porque se percebe que a economia não tem como absorver produtivamente essa oferta, geralmente é confundido com ser inimigo do crescimento e da geração de emprego.
Estará a sociedade brasileira preparada para aceitar e legitimar esses ajustes com o mesmo entusiasmo com que recebeu a queda inicial da inflação? Estarão os consumidores e os empresários dispostos a adiar por algum tempo outros sonhos e desejos (como mais crescimento e distribuição de renda) enquanto se batalha pela consolidação de um primeiro (a estabilização)?
Teoricamente não é necessário descarregar sobre os ombros de um setor apenas os custos da consolidação da estabilidade. Na prática, entretanto, cada um se considera mais prejudicado e prefere jogar os custos do ajuste sobre ombros alheios. Teoricamente o poder público pode arbitrar esses conflitos e conduzir o processo de forma a preservar-lhe a legitimidade. Na prática os governos costumam se esquecer de fazer a sua parte, dão o mau exemplo e assim inspiram uma insatisfação generalizada.
Diz-se que querer é poder. Mas quem tudo quer, tudo perde.

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