São Paulo, terça-feira, 4 de outubro de 1994
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A segunda revolução democrática

FRANCISCO WEFFORT
ESPECIAL PARA A FOLHA

``O Brasil não é um país subdesenvolvido, é um país injusto". Esta frase de Fernando Henrique Cardoso está destinada a tornar-se célebre. O autor, o qual aliás conta algumas outras frases célebres em sua obra, acaba de eleger-se Presidente da República, e por isso mesmo talvez tenha que considerar entre as suas metas de governo tornar o país menos injusto. Se for assim, a frase envolve, além de uma perspectiva de governo, a consideração de um imenso desafio histórico.
Eu votei em Lula. Por isso mesmo devo ser muito claro em um ponto que fica aqui como uma espécie de preliminar. Fernando Henrique venceu por seus méritos políticos, não pelas maracutaias com que alguns tentaram favorecê-lo. As figuras do governo que quiseram ajudá-lo, só conseguiram complicar-lhe o jogo. Diante das tentativas infelizes que se associaram aos nomes de Ricupero e Stepanenko, Fernando Henrique reagiu um pouco como o político chileno que, em situação semelhante, gritava a seus aliados ``no me ayudes compa¤ero!". Talvez devesse ter gritado mais, para limpar não apenas a sua imagem mas a do próprio país.
O Brasil é injusto, do ponto de vista social. Mas é, em geral, limpo, do ponto de vista eleitoral. E isso não chegou até nós de graça, tem um preço escrito em nossa história. Desde 1930, quando tivemos uma revolução contra as atas falsas da República Velha, temos caminhado para a transparência dos procedimentos eleitorais. De lá para cá, tivemos ditaduras (1937, 1964), mas não eleições falseadas pela fraude, exceto em casos excepcionais e locais prontamente colocados sob controle. Leonel Brizola, cuja estrela desvanece melancolicamente nos céus da República, propôs que, com exceção de Lula e FHC, os candidatos deveriam renunciar em protesto contra a imensa fraude que estaria sendo perpetrada pelo que ele chama de ``sistema". Errou o alvo, assim como Lula errou o alvo quando falou do Brasil como de uma forma ``república bananeira".
Crescimento e pobreza
Sessenta e quatro anos depois de 1930, o que está em questão, no Brasil, não são os procedimentos eleitorais, mas a própria sociedade. Fernando Henrique é um intelectual muito sofisticado para que suas idéias possam se resumir em uma única frase. Quando diz que o Brasil não é subdesenvolvido mas injusto, o que sugere, na verdade, é que o Brasil não é tão subdesenvolvido quanto injusto. Ele evidentemente não ignora que o sertão, da Paraíba ou da Bahia, é subdesenvolvido, apenas pretende ressaltar que mesmo o crescimento de São Paulo é, no essencial, injusto. Dizem as estatísticas que a economia brasileira cresceu 5% no ano passado, mas o nível de emprego permaneceu na mesma. Não se pode tomar isso como exemplo de crescimento econômico injusto?
``São Paulo –Crescimento e Pobreza", eis o título de um pequeno livro dos anos 70 que bem faríamos reeditando no dias que correm. Primeiro, porque é um excelente estudo sociológico, segundo porque, entre seus diversos autores, conta com o nome de Fernando Henrique, na época Presidente do Cebrap e seu principal inspirador. Eis a idéia central: a economia de São Paulo cresce e com ela cresce também a pobreza.
A riqueza e a pobreza crescem lado a lado, como deveria ser evidente para quem abre os olhos para as favelas que aumentam nas encostas do Morumbi e nas várzeas da Marginal.
Os morros do Rio com as suas favelas fazendo fundo para os edifícios da classe média, são um fenômeno anterior e da mesma natureza. O Brasil cresce como poucos países do mundo moderno, como mostrou Wanderley Guilherme dos Santos em notável estudo comparativo. E ao lado da riqueza cresce a miséria. Isso tem algo a ver com o que somos desde o início. ``Casa Grande & Senzala", lembram-se?
Atribuíram a Fernando Henrique uma outra frase famosa: ``esqueçam o que eu escrevi". Se ele disse estas palavras em algum momento, não creio que lhes tenha dado o sentido que lhe atribuem. Por que haveria de renegar a sua condição de intelectual quando é esta a sua maior força? Todos os que, como eu, participaram da sua campanha para o Senado em 1978, sabem que o seu cacife político naquela rodada era o do intelectual que se fizera líder de intelectuais nas lutas de resistência. É esta a definição de um grande intelectual: um líder de intelectuais. Como tal, só tinha a seu favor os seus escritos e a sua reputação. Embora uma boa parte dos intelectuais brasileiros tenha preferido o PT e outros –que não são tão poucos como se pensa– ainda permaneçam no PMDB, como entender os muitos que foram para o PSDB sem a liderança de Fernando?
Eu entendo que aquela frase escandalosa só pode ter um sentido. É o seguinte: ``não me venham complicar a discussão das questões concretas de agora com os escritos dos anos 70, ou 80". Intelectuais que têm um mínimo de experiência política prática sabem o que isso significa. Se temos uma dificuldade para entender um problema concreto, teremos duas se quisermos, além disso, entender textos anteriores dos protagonistas. Se eu tivesse que voltar aos meus textos diante de cada exigência prática de minha ação, a minha modesta militância se tornaria impossível. Em face da urgência do problema concreto, nenhum intelectual pede para que esqueçam o que ele escreveu, mas que não atravanquem com discussões de textos a análise do problema real. O ponto é outro. ``Forget it, let us go".
Educação burguesa
Os primeiros livros de Fernando, ainda sob a orientação de Florestan Fernandes e alguns com a colaboração de Octavio Ianni, têm como tema as relações raciais no sul do Brasil. Ninguém precisa se perder em muitas discussões abstratas para perceber que estes textos pretendem uma sociedade democrática, um país onde um homem não precise se humilhar por causa da cor da pele. ``Capitalismo e Escravidão", notável tese de doutorado de Fernando Henrique, é uma nova interpretação das raízes do capitalismo na formação brasileira. Em sua brilhante tese de livre-docência, ``Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico no Brasil", está a idéia central de que os empresários com frequência recebem benesses do Estado mas não assumem as responsabilidades correspondentes. Mudou muito nos dias que correm?
``Dependência e Desenvolvimento na América Latina", escrito junto com Enzo Falletto, desenvolve a idéia, estranha em uma época em que se acreditava em que estávamos condenados ao estancamento porque éramos dependentes, que o Brasil, sim, é dependente e, contudo, cresce. Vêm nos anos 70, os textos de combate pela democracia que, depois, são juntados em ``Autoritarismo e Democratização" e em ``Democracia para Mudar".
Eu não creio que Fernando Henrique, mesmo eleito presidente, queira se esquecer de nada que escreveu. Nem creio que isso seja necessário. Antes pelo contrário. De minha parte, eu me lembro não só de textos, mas de situações. Por exemplo, quando viajamos juntos, em meados dos anos 60, pelo altiplano do Peru em missão do Ilpes (ONU), para um contacto com as populações camponesas que se estendem de Puno na beira do Titicaca até Cuzco, quase nas encostas de Machu-Pichu, e para observarmos as atividades de cooperação popular do governo Belaunde Terry.

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