São Paulo, domingo, 9 de outubro de 1994
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Bancos estatais são ameaça ao Plano Real

EDUARDO GIANNETTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

``Excrescências". Foi este o termo usado pelo ministro da Fazenda, Ciro Gomes, para se referir aos bancos estaduais e seu lugar nas finanças brasileiras. A expressão é dura, mas merecida –uma ave rara na retórica do subterfúgio e do acochambramento que costuma dominar o tema. Logo se vê que o ex-governador do Ceará não era candidato a cargos eletivos.
São três, segundo o ``Aurélio", os sentidos de ``excrescência": 1) saliência; 2) excesso, superfluidade; e 3) tumor sobre a superfície de qualquer órgão. A raiz vem do latim ``excretio" (ação de expelir), a mesma que gerou ``excreta" (matéria fecal que o organismo evacua). Não será surpresa, portanto, se no próximo rompante o ministro partir para a escatologia...
O sistema financeiro estatal é uma categoria que inclui mais de 30 organizações. Além dos 24 bancos estaduais, existem as caixas econômicas e os bancos federais e regionais. Banco do Brasil (BB) e Banespa são os dois maiores bancos do país.
Só o BB, para se ter uma idéia, tem cerca de 120 mil funcionários. Sua despesa com pessoal equivale a 1,5% do PIB brasileiro –o triplo do consumido pelas 53 instituições universitárias federais existentes no país.
Essa hipertrofia do sistema financeiro estatal foi, em larga medida, um subproduto da inflação alta e crônica. É difícil imaginar que ela tivesse acontecido, pelo menos nessa proporção, num ambiente estável. O tumor floresceu na estufa inflacionária, adaptou-se maravilhosamente a ela e sempre se nutriu das distorções e possibilidades de ganho que a inflação produz.
Por mais ineficientes que fossem, os bancos estatais podiam contar uma vantagem adicional em relação aos privados. Tinham a exclusividade do ``float" milionário dos recursos cativos –todas as verbas e gastos do próprio setor público– que transitavam por suas agências. Acostumaram-se de tal forma à mamata que passaram a imaginar que seus ``lucros" eram reais e faziam parte da ordem natural das coisas.
Quanto terá ganho o BB, para ficarmos num único exemplo, pela ingrata tarefa de recolher e ``administrar" as verbas do salário-educação, antes de repassá-las patrioticamente ao Tesouro? Detalhe: a lei do salário-educação não prevê a correção monetária dos valores arrecadados. O mais incrível de tudo é que, durante todos esses anos, o BB ainda recebia –como, aliás, continua recebendo– 0,8% do total do salário-educação, a título de ``despesas bancárias"...
Mas, com a redução da inflação, de julho para cá, a situação começou a mudar. O tumor oculto dos bancos estatais vai aos poucos aflorando e, ao mesmo tempo, as agruras da vida fora da estufa já se fazem sentir. Sem o ganho inflacionário, os bancos estatais não têm mais como financiar seus gastos correntes e compromissos financeiros.
Alguns números, baseados em estudos feitos por consultores especializados, ajudam a visualizar o problema. Os seis maiores bancos privados brasileiros têm um custo de US$ 15.300 por funcionário. Nos seis maiores bancos estatais, empregando centenas de milhares de pessoas que não têm nada a ver com o peixe, o gasto é de US$ 28.400 por funcionário.
O Banespa gasta, em média, o triplo do Bradesco com cada funcionário. No Banco do Nordeste o custo por empregado chega a US$ 51.600. Quem pagava a conta? Um estudo do Ministério da Fazenda, citado pela ``Gazeta Mercantil", estima que um terço da despesa dos bancos estatais era financiado pelo ganho inflacionário. E agora, quem paga?
O outro lado dessa mesma moeda (podre) é a questão da má qualidade dos empréstimos feitos. No final de 93, os bancos privados tinham créditos em atraso ou de recebimento duvidoso da ordem de 3,3% do seu patrimônio líquido. Para os bancos estatais, que se tornaram fonte de dinheiro fácil para o resto do setor público, essa proporção atinge 37,6% do patrimônio. Só o Banespa, por exemplo, tinha 84% dos seus empréstimos (US$ 8 bilhões) nas mãos do governo estadual, estatais e prefeituras.
Tudo isso é sabido. O que ainda não está claro, contudo, é como pretende agir o governo para impedir que o tumor dos bancos estatais se espalhe pelo resto do organismo e termine comprometendo a gestão monetária do real. Os indícios, pelo menos até o momento, são de que vai prevalecendo sutilmente a velha máxima do homem cordial –``aqui, tudo se afrouxa e humaniza".
No final de setembro, o BC forneceu R$ 1,65 bilhão de ajuda de curto prazo a três bancos estaduais, permutando títulos do governo federal por papéis da dívida estadual. Poucos dias antes, o Conselho Monetário Nacional afrouxou as regras contábeis sobre créditos duvidosos para que a Caixa Econômica Federal e o Banco do Nordeste pudessem ``regularizar" seus balanços. Fala-se agora em elevar para R$ 14 bilhões, já no final de outubro, a meta de expansão da base monetária.
Nada disso é fatal para o plano, mas há limites. Uma idéia que está ganhando força em círculos tucanos é a de acelerar a privatização, ao nível estadual, para gerar recursos que permitam a capitalização dos bancos estatais. Em vez da costumeira injeção na veia aplicada pelo BC, o que arruinaria o real, a saída seria a venda de ativos públicos para dar sangue novo e limpar o passivo gangrenado das instituições oficiais de crédito.
Quanto à primeira parte da proposta –acelerar a privatização–, só se pode aplaudir e torcer para que não fique em palavras. A dúvida é quanto ao uso das receitas geradas e o destino dos bancos estatais. Capitalizá-los com a venda de ativos não resolve o problema, apenas empurra-o para frente. No fundo, o que se estaria fazendo é dar vida nova aos bancos estatais para que os governantes possam voltar a usar e abusar deles no futuro.
A diferença básica entre um banco estatal e um privado é que o primeiro recebe ordens de políticos e o segundo obedece à disciplina imposta pelo mercado. Imaginar que uma simples lei vai isolar os bancos estatais da interferência política é uma crença ingênua. Se leis desse tipo funcionassem no Brasil, a inflação nunca teria existido.
Bancos estatais são excrescências pré-capitalistas. Será um grave erro revitalizá-los e mantê-los sob a tutela de políticos que, como a experiência mostra, podem se revelar menos honestos e capazes do que desejaríamos que fossem. A genuína solução –e que não depende de reforma constitucional– é só uma: privatizar o que for possível e liquidar o que não for.

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