São Paulo, domingo, 9 de outubro de 1994
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América Latina, os desafios do futuro

SHAHID JAVED BURKI

Reformas vieram para ficar desde que sejam dados passos adicionais no sentido de consolidá-las
Não seria exagero dizer que as realidades e o estado de espírito vigentes hoje na América Latina, quando comparados aos de dez anos atrás, estão irreconhecíveis.
Nos últimos anos as condições e as convicções modificaram-se dramaticamente. As percepções dos observadores externos passam por mudanças correspondentes.
No entanto, os observadores ainda questionam se essas mudanças são permanentes e se o processo de modernização vai continuar a transformar as arcaicas estruturas sociais latino-americanas.
Em suma, será que o vento reformista que vem soprando na região de alguns anos para cá não passa de uma perturbação atmosférica sedutora, porém temporária?
Nosso ponto de vista é que as mudanças vieram para ficar, desde que sejam dados passos adicionais no sentido de consolidá-las. São as seguintes algumas das razões de nosso otimismo.
Em primeiro lugar, na maioria dos países onde reformas vêm sendo adotadas, a população mostra-se entusiasmada. As políticas estabilizadoras conquistaram adeptos, onde antes havia uma abundância de céticos.
A idéia de que é possível guardar dinheiro no bolso por mais do que alguns dias é novidade para quem estava acostumado a conviver com índices inflacionários de 2.000% ou 4.000% ao ano.
O fato de não mais serem obrigadas a planejar suas compras básicas no supermercado ou suas visitas ao banco como se sua própria vida dependesse disso libertou muitas pessoas para gastarem seu tempo em atividades mais agradáveis ou recompensadoras. Num sentido muito pessoal, a estabilização vicia.
Em segundo lugar, existe entre políticos e formuladores de políticas econômicas um crescente consenso de que resistir à maré reformista não traz recompensas, nem junto aos eleitores, no interior do próprio país, nem junto a potenciais parceiros no exterior. A paciência local e internacional com ditadores, políticos corruptos e governos ineptos e perdulários está cada vez menor.
Em terceiro lugar, a maioria dos dirigentes latino-americanos e seus pares em organizações internacionais e governos amigos têm uma idéia clara de quais são os próximos passos e com que urgência devem ser dados.
Um desses passos –o mais urgente– é combater a pobreza e a má distribuição da renda. Enquanto muitos países na América Latina comemoram níveis recordes de influxo de capitais e se alegram com as perspectivas de uma nova era de prosperidade, milhões de pessoas ainda lutam pela sobrevivência em favelas onde a vida é dificílima.
As estimativas referentes à pobreza variam e frequentemente são inexatas, mas um recente estudo do Banco Mundial estima que a porcentagem de pessoas vivendo em condições de pobreza na América Latina aumentou de 27% para 32% entre 1980 e 1989.
Ou seja: apesar de ser a região mais rica do mundo em via de desenvolvimento, com uma renda ``per capita" de US$ 2.675 em 1992, a América Latina tem 160 milhões de pobres, a maioria dos quais vive em zonas urbanas.
A recessão dos anos 80 parece haver agravado o padrão de distribuição de renda na região. O estudo do Banco Mundial sugere que no final da década, os 20% mais pobres recebiam apenas 4% do PNB total.
No Brasil e na Guatemala, os 20% mais pobres receberam apenas 2% da renda total. Em outros países em desenvolvimento de outras regiões, a parcela destinada aos 20% mais pobres é de 7%.
Deixados de lado no avanço rumo ao progresso e ao bem-estar, estas milhões de pessoas carentes de tudo, que vivem com menos de um dólar por dia, serão uma ameaça interna.
Democracia e estabilidade significam pouco ou nada para os exércitos de crianças de rua que passam fome nas grandes cidades latino-americanas.
A coalizão que apóia as reformas precisa ser ampliada por meio de mais reformas, não menos.
A primeira prioridade é o crescimento. Nos últimos anos o índice de crescimento da América Latina melhorou, atingindo uma média de 3,2 a 3,4 por ano. Mas este nível de expansão por si só não irá reduzir a pobreza, apenas manter seu nível atual.
Para reduzir significativamente o nível de pobreza, a região precisa dobrar seu índice médio de crescimento anual até o final da década. É uma tarefa grande e difícil, mas precisa ser viável.
Para que isso aconteça, os governos da região terão de acelerar as reformas do Estado e da legislação. O objetivo deve ser facilitar o desempenho do setor privado –o verdadeiro motor do crescimento– e prever sua penetração em novos setores, através da expansão do processo de privatização.
Os governos terão de conduzir políticas que incentivem o investimento estrangeiro e aumentem a taxa de poupança, sem a qual os investimentos internos irão cair (as economias da Ásia Oriental poupam em média 34% do PNB, contra os 20% da América Latina).
Com uma combinação correta de políticas e incentivos de mercado, a região terá condições de fazer os investimentos necessários em infra-estrutura e ajudar a impulsionar o índice de crescimento de seu PNB até o nível necessário para conseguir uma redução significativa da pobreza.
Para atingir essa meta, a América Latina terá de investir US$ 60 bilhões por ano para recuperar, reconstruir e desenvolver sua infra-estrutura básica, que se deteriorou gravemente durante os últimos dez anos.
Os investimentos em infra-estrutura serão a ponte para a redução da pobreza a médio prazo. Mas apenas investimentos em infra-estrutura, por si só, não irão transformar os países da América Latina em Estados modernos.
Será preciso melhorar significativamente a educação (especialmente a primária), a saúde e a proteção ambiental.
Educação é crucial para formar recursos humanos capazes de conduzir a América Latina ao século 21. Da mesma forma, uma força de trabalho doente e malcuidada não ajudará a aumentar a produtividade de modo sustentável.
Na questão ambiental, políticas inconsistentes podem comprometer a utilização eficiente dos recursos naturais e impor um ônus desnecessário em termos de saúde e bem-estar humanos.
Fazer progressos nesta agenda repleta –e ao mesmo tempo preservar os avanços conquistados em termos de políticas macroeconômicas– é um grande desafio para a América Latina e para as instituições, como o Banco Mundial, que desejam continuar a apoiá-la.
Mas os êxitos obtidos pela região são tão impressionantes, seu capital humano tão criativo, seus empresários empreendedores tão dinâmicos, que não pode haver lugar para outro sentimento senão fé no presente e esperança no futuro.

Tradução de Clara Allain

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