São Paulo, domingo, 9 de outubro de 1994
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Um acervo enigmático

MARINA DE MELLO E SOUZA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em ``O Museu Darbot e Outros Mistérios", de Victor Giudice, nota-se de cara a qualidade da prosa literária que ali vai, o bom uso que faz das palavras e imagens. Logo no primeiro conto, de uma página, a declaração da importância do pai e do seu Ford coupê 1946 verde-escuro deixa claro que há um narrador disposto a expor a si próprio, correndo o risco de perder o interesse se ficar apenas na história de uma pessoa específica, mas podendo também atingir sentimentos universais, comuns aos homens, uma vez que há disposição em olhar fundo na própria alma.
O pai, que de alguma forma nos diz que o narrador vai abrir seu coração, e o Ford, que sempre acompanha o pai, aparecerão outra vez no conto sobre o ``hotel da Morte", intitulado ``A História que Meu Pai Não Contou", dos mais bem realizados do livro.
Este conto, por sua vez, tem alguns elementos de ``O Hotel", sobre o qual o leitor é avisado que foi censurado em 1972. A relação do hotel com a repressão, se é que existe (a nota alertando sobre a censura anterior é que nos leva a fazê-la), é por demais hermética, amedrontada talvez pela violência real da repressão política de então.
Nos dois hotéis, dos dois contos, não há saída, sendo a entrada voluntária, desejada mesmo –opção feita com convicção. Ambos hotéis devoram as presas com apelos e métodos diferentes, e em ambos os contos as situações que se enquadram no chamado ``realismo fantástico" são absorvidas pelo leitor com naturalidade, sem um certo constrangimento de se estar diante de algo falso, presente nos finais dos três primeiros contos.
Mas se até o terceiro conto os finais soam artificiais, a partir do quarto desaparece a estranheza com o desenlace das histórias. A aliança de uma forma simples de expor os fatos, como numa crônica de cenas cotidianas onde datas e lugares são sempre evocados no começo da narrativa, como se atestassem a sua veracidade, com o fator de magia que aos poucos vai sendo incorporado, dá uma graça especial aos contos, reforçada pela destreza com que as palavras são usadas.
O autor, que ao longo do livro vai aprimorando o fecho dos seus contos, escolheu o melhor de todos para terminá-lo e dar-lhe o título. ``O Museu Darbot" é o movimento mais complexo e mais longo deste livro marcado pela música.
Se o pai e seu Ford verde-escuro indicam os aspectos mais severos dos contos, o lado repressor da realidade, e a música, elemento quase onipresente, indica um lado mais livre do autor, onde emoção, afetividade, sexualidade podem se expandir, a pintura, que domina o final, dá ensejo para que faça seu conto mais bem realizado.
Extremamente alerta para as diferentes formas de expressão da sensibilidade, Victor Giudice atinge o leitor através das palavras, o que pode ser muito mais difícil do que com o uso de sons, formas e cores.

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